As novas tecnologias não substituem uma boa dose de ensino adicional

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As tecnologias estão disponíveis em todos os lugares e progressivamente estão sendo incorporadas às salas de aula. Mas a tecnologia, por si só, não opera milagres – podendo inclusive prejudicar a aprendizagem das crianças se não for utilizada de forma eficiente (saiba mais sobre o impacto da tecnologia em sala de aula no nosso e-book Educação Baseada em Evidências).

Isso é deve ser levando em conta quando falamos do ensino da leitura. É o que sugere Roger Beard, pesquisador e professor da Universidade de Londres, uma das maiores referências no mundo quando o assunto é ensino da língua. Beard vem ao Brasil em agosto a convite do Instituto Alfa e Beto para o VIII Seminário Internacional, que terá como tema o Ensino da Língua e Formação de Professores.

De acordo com o especialista, novas tecnologias como tablets e smatphones podem oferecer riscos para a compreensão da leitura. “No Seminário vou apresentar alguns resultados de pesquisas que sugerem que a compreensão da leitura pode estar em risco quando feita no formato digital, em textos de tela. Parece que algumas crianças não desenvolvem a reflexão que é necessária para penetrar no texto quando leem numa tela”, explica. Segundo Beard, pode haver uma tendência para tratar o texto da tela de modo um pouco mais superficial do que um texto em papel.

Isso não significa, porém, que devemos deixar de lado as inovações tecnológicas. Afinal, elas vieram para ficar e já não é possível pensar o mundo moderno sem elas. O que o pesquisador aponta é que sua utilização deve ser feita com uma boa dose de ensino adicional, a fim de garantir que o aprendizado seja de boa qualidade.

Nós conversamos com Roger Beard a respeito desse e de outros assuntos e o resultado dessa entrevista está sendo publicado em partes neste espaço. A terceira parte você confere a seguir:

Qual a importância de dominar as habilidades básicas de leitura para desenvolver a fluência em compreensão textual? As escolas devem ensinar essas habilidades?

Habilidades básicas de leitura referem-se ao que se chama de alfabetização, nos países de Língua Portuguesa. Elas incluem o reconhecimento de palavras conhecidas e a capacidade de decodificar palavras desconhecidas. Elas são componentes-chave de leitura. No trabalho de Gough e Tunmer (Simple View of Reading), a leitura de palavras e a compreensão de linguagem são vistas como interagindo em diferentes dimensões. Tanto o processo de reconhecimento da palavra quanto o processo de compreensão da linguagem devem ser trabalhados juntos na escola. Juntos não significa ao mesmo momento, mas em paralelo. Isso foi considerado no Currículo Nacional do Reino Unido. As crianças precisam ser boas em ambos e isto sustenta a necessidade de ensinar esses conteúdos. Durante minha apresentação no seminário eu vou citar algumas das principais evidências de pesquisa do Reino Unido e dos EUA.

A compreensão de um texto é determinada, principalmente, pela capacidade de compreender o vocabulário. Dominar o vocabulário pode não ser um grande problema para entender a maioria dos romances e textos literários, mas é certamente um problema para textos argumentativos, científicos e técnicos, como livros didáticos. Existem técnicas gerais para promover a compreensão? Como os professores de línguas podem ajudar os alunos a compreender o que leem nas várias disciplinas?

Avançar no vocabulário é também é parte do ensino da leitura e é fundamental tanto para ler quanto escrever. Entretanto, pesquisas sugerem que apenas saber  vocabulário não é uma habilidade muito relevante, o trabalho de desenvolvimento do vocabulário pode ser realizado de maneira mais eficaz através de textos integrais e experiências que ensinem a olhar outros caminhos, para mundos desconhecidos, para palavras utilizadas de um modo desconhecido. É preciso trabalhar o foco da leitura dando atenção às palavras, a seus sinônimos e outros aspectos que conectam essas palavras.

Como isso se traduz na prática, no dia a dia da sala de aula?

Uma série de pesquisas que vou mencionar no artigo que estou preparando para o VIII Seminário Internacional do Instituto Alfa e Beto sugere a necessidade de olhar para a capacidade de leitura da maneira como nós introduzimos a linguagem para crianças.  Assim, a criança estará olhando para um gênero específico, uma característica do texto: o que torna aquilo uma história, ou o que o torna em um texto expositivo, um texto argumentativo ou um texto descrito? Nós olhamos para as demandas de vocabulário para certificar que é possível percorrer o texto, ajudando as crianças a identificar palavras-chave, palavras que mostrem o conteúdo subentendido no texto. Então elas podem compreender o significado das palavras. Assim podemos começar a construir pontes entre o que as crianças já sabem sobre o conteúdo, que na realidade mostra o que elas sabem sobre as palavras de modo geral, e as palavras novas. E, mais uma vez, um clichê: construir uma ponte entre o novo e o desconhecido como parte desta jornada. Em outras palavras, o ensino do vocabulário deve estar intimamente ligado ao ensino da sintaxe.

Por isso é importante avançar o ensino e incluir também estruturas de texto desconhecidas, porque compreender as estruturas da frase ou seja, a sintaxe, é outra chave disponível para entender como um certo tipo de texto funciona, destacando grandes frases e também grandes frases subjetivas, ou utilizando voz passiva ou voz ativa, ou talvez, em um tipo de texto mais técnico, destacando a capacidade de usar subordinação, incluindo cláusulas de subordinação que são mais relativas para aquele  tipo de texto. Então, é preciso aconselhar os estudantes a olhar para o texto em outro nível, também no nível do vocabulário e da estrutura da frase, incentivando a fazer perguntas sobre a diferença entre isso e o que as crianças já sabem, porque uma área-chave de compreensão é o conhecimento que as crianças podem trazer a partir das palavras.

Mas há uma precondição para fazer esse trabalho, e isso que acontece no Inglês britânico eu suspeito que também aconteça no português brasileiro: as crianças precisam de uma boa capacidade de decodificação, porque o vocabulário aumenta progressivamente nas séries seguintes. Decodificar rápida e facilmente depende das novas palavras as quais eles são expostos e que eles aprendem a decodificar muito rapidamente, afim de assimilar o vocabulário, o conhecimento da área.

Há evidências que mostram que a maioria das crianças gosta de ler e muitos se tornam ávidos leitores entre os 7 e os 10 an­os de idade. Mas na adolescência, os smartphones parecem eliminar esse hábito. Nesse sentido, qual é o desafio que as tecnologias impõem?

Devido a alguma característica sobre a que não sabemos muito a respeito, sinto que com a tecnologia existe um risco para a compreensão da leitura. No Seminário vou apresentar alguns resultados de pesquisas que sugerem que a compreensão da leitura pode estar em risco quando feita no formato digital, em textos de tela. Parece que algumas crianças não desenvolvem a reflexão que é necessária para penetrar no texto quando leem numa tela. Pode haver uma tendência para tratar o texto da tela de modo um pouco mais superficial do que um texto em papel. Eu acho que nós precisamos tomar certa precaução com leitura feita de maneira exclusiva ou preponderante no computador ou tablet, pois pode ser um risco de cultivar uma leitura superficial. No entanto, vou expor mais sobre isso no seminário. Eu acho que nós precisamos abraçar tecnologias e reconhecer que os smartphones, textos digitais, e-mails etc. devem ser tratados com certa dose de ensino adicional, a fim de garantir que o aprendizado seja de boa qualidade.