‘É possível mudar a educação no Brasil’

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Ele é conhecido por dizer o que pensa, custe o que custar. Se o tema for a saúde da educação brasileira, ah!, Claudio de Moura Castro, um carioca “naturalizado mineiro” (vive em Belo Horizonte), aproveita para logo dizer que “ela nunca esteve melhor, mas vai uma m…!”. Economista com estudos em Yale e Berkeley, ambas universidades americanas, ele gasta a semana em vaivém pelo País (é assessor do Grupo Positivo, em Curitiba, por exemplo), rotina de trabalho centrada em torno de um só interesse: educação.

E como foi que ele ganhou essa paixão? Depois de ter assistido, ainda estudante, a duas aulas de Amartya Sen – economista indiano que ganharia o Prêmio Nobel pelas ideias de distribuição de renda e justiça social, em 1998. “Ele mostrou que, com o instrumental analítico e a maneira de raciocinar do economista, é possível analisar a educação e fazer o diagnóstico dos seus problemas, encontrando soluções inteligentes”, salienta.

É aplicando o mantra do mestre que Claudio de Moura e Castro, conselheiro do Educar para Crescer, avalia o atual momento da educação brasileira. Sem dó nem piedade, mas com fé no que virá.

Como vai a educação brasileira?

Nunca esteve melhor, mas vai uma m…! Esse sonho de que a educação brasileira era boa e ficou ruim, isso não existe, isso era uma quimera, a nossa educação sempre foi ruim… Em algum momento, as escolas públicas – elitistas, elas eram de classe média – eram de fato boas, uma escola pública de classe média (que eu, inclusive, frequentei no Rio de Janeiro). Mas isso aconteceu há muito tempo… A grande evolução é que nós tínhamos uma educação boa para poucos e passamos a ter uma educação ruim para muitos, com uma leve tendência de melhora nos últimos anos.

Mas, afinal, por que você disse que nunca esteve melhor?

É que agora se dá muita atenção à educação no Brasil, existe, por exemplo, o IDEB (Índice de Desenvolvimento da Educação Básica), que teve um papel muito importante nessa nova situação ao criar um parâmetro de qualidade. E os municípios com um pouco de vergonha na cara começam a cobrar resultados.

Mas, insistindo no tema, você já disse, em entrevista recente, que a nossa educação ‘continua a oscilar entre o péssimo e o sofrível’. É isso mesmo?

Veja, quando nós pegamos os resultados do PISA (Programa Internacional de Avaliação de Alunos) e pegamos o desempenho da nossa classe média e da nossa classe alta, o ‘quartinho de cima’, esses resultados são mais baixos do que o ‘quartinho de baixo’ da Europa, ou seja, a classe operária. Em outras palavras, os filhos de operários na Europa aprendem mais em sala de aula do que os filhos das famílias de classe média e alta do Brasil. Isso é pouco?

É possível dizer que nós já despertamos para a educação?

Nós tivemos vários séculos de total hibernação, de 1500 a 1950, eu diria até que a Primeira República foi pior que o Segundo Império em educação. Com o processo de industrialização do Brasil, em 1950, começa a existir uma pressão maior por educação, pois ela começou realmente a fazer falta. Aí as coisas começaram de fato a acontecer, cria-se uma rede de universidades federais (entre 50 e 60) etc. E de 1950 ao ano 2000, nós conseguimos passar de 50% a quase 100% de atendimento na escola básica, o que também não é pouca coisa: nesse período, nós crescemos em educação mais do que qualquer outro país da América Latina!

Crescimento sem qualidade?

Uma qualidade, eu diria, de sofrível para ruim e continuamos com uma educação assim. Aí vem aquela história do copo cheio e do copo vazio. Quase todos os países que deram um grande salto quantitativo afundaram na qualidade… Nos EUA, por exemplo, quando houve a quase universalização da high school (como é chamada a escola secundária naquele país), entre as décadas de 60 e 70, a qualidade afundou. E, no Brasil, o que aconteceu? No período de expansão vertiginosa, não houve uma queda de qualidade – e nós podemos considerar essa a maior proeza do nosso país em educação no último meio século. Mais: a partir de 93, temos o SAEB (Sistema de Avaliação da Educação Básica) e sabemos exatamente o que está acontecendo com a qualidade, sabemos inclusive que houve uma ligeira queda e, mais recentemente, uma ligeira subida. Mas, a partir de 90, houve a grande expansão da nossa educação, sem queda na qualidade, o que é um resultado muito positivo e que todo mundo subestima. Uma proeza alcançada, sobretudo no Ensino Fundamental e a nível municipal, com cada município se virando por si.

E a respeito do último Plano Nacional de Educação (PNE), o que tem a dizer? Você já o chamou de inócuo, retórico… Foi mesmo uma perda de tempo?

Perda de tempo? Pior que isso. Desviou a atenção para o foco real… Como é que se faz um plano de educação? Você chama quem entende do assunto, gente que gastou anos de sua vida estudando o tema, tem noção de conjunto e não está de papel passado fazendo lobby para alguma coisa. É a ideia dos sábios, pode estar fora de moda, mas é perfeita. Então, os sábios se reúnem e perguntam o que é bom para o Brasil e não para o sindicato dos professores ou para esse ou aquele grupo etc. Depois de pronto, aí sim você submete o plano à discussão de todos para ir ajeitando… Mas a sua espinha dorsal deveria ter sido produzida por um grupo que está preocupado com o futuro do País – e não com os interesses daquele que paga o seu salário.

Não há nada de positivo no PNE que acaba de ser aprovado?

No fundo, esse PNE é o somatório dos lobbies que falaram mais alto. Porque ninguém falou em eficiência – e nós temos uma ineficiência escandalosa, sobretudo nos centros de ensino público. Para cada 100 horas de ensino estipuladas por lei, só 50 horas, no máximo, são de fato proveitosas. As outras 50? É o professor que saiu cedo ou faltou, é a greve, é o dia da Árvore e por aí afora. Em um país onde metade do tempo de aula realmente não acontece, bem, isso é uma tragédia – e o PNE não fala disso. Ou seja: você investe e só consegue de volta metade.

Você também já disse que o PNE é um conjunto de “… medidas boas perdidas em uma salada de irrelevâncias”. Poderia detalhar?

São as medidas que definem metas e prazos, vamos fazer isso em um tempo determinado, por exemplo. Mas, de outro lado, aquela que estipula o gasto em investimento (10% do PIB) nos próximos dez anos, essa só vai incitar a confusão… É um convite a gastar dinheiro sem se preocupar como se gasta!

Há mesmo quem diga que se trata de muito dinheiro…

O Brasil gasta bastante em educação, é verdade, mas gasta mal. E o PNE não dá uma diretriz de se preocupar em qualidade, o que é trágico. O plano diz que vai gastar 10%, mas não diz quem é que vai pagar. Um retrato da pusilanimidade do processo.

É fato que ele foi o acordo possível sobre educação no País atual?

Não concordo. O plano partiu da forma errada, a sua fórmula estava errada. E a partir daí a chamada ‘inteligência’ não consegue mais mudar muita coisa.

Agora, para uma sociedade que pretende acompanhar a era do conhecimento, onde estariam os grandes gargalos da nossa educação?

Primeiro, a qualidade do Ensino Básico. Quando eu comecei a acompanhar o dia a dia da educação brasileira, bem, a escola não tinha porta, havia até titica de galinha dentro da classe, não tinha professor, nem livro, nem merenda… Ou seja, era um arremedo de escola. Hoje, não, a escola brasileira tem um retrato muito parecido à do Primeiro Mundo. Só que é uma fotografia. Porque, quando se olha para o aluno que sai dessa escola, logo se repara que ele é muito ruim. Então, nós temos escola, mas ela não consegue transmitir a formação que corresponde ao Ensino Fundamental. Então há um drama de qualidade no Ensino Fundamental – e que está centrado no professor e na gestão. Por exemplo: a escolha do diretor é muito ruim. Havia o sentimento de que, passando da indicação política para a eleição o processo iria melhorar, mas eu penso que só piorou… Porque agora existe uma campanha, com o partido dentro das escolas, escolhendo o diretor – e ele já assume o cargo com o rabo preso. Uma escolha ideológica, de conchavo.

E quanto ao nosso Ensino Médio, qual seria o maior problema?

Quanto ao Ensino Médio, além de ter os mesmos erros do Ensino Fundamental, há um erro de arquitetura: ele é concebido de forma errada. Nos EUA, só existe uma porta de entrada para o Ensino Médio que é a high school. Quando o aluno chega nela, ele se depara com ‘centenas’ de disciplinas, das quais apenas 10 ou 20 são obrigatórias, se tanto… E assim mesmo, com alternativas. Dificilmente, portanto você vai encontrar dois garotos que tenham concluído o curso, depois de quatro anos, seguindo as mesmas disciplinas, cada um fez escolhas em nome do que mais gostava, do que dava conta. Na Europa, você tem escolas muito mais estreitas em sua orientação, mas com uma oferta de ensino diferente de acordo com os alunos, umas são mais ou menos profissionalizantes, outras dão diplomas para entrar nesta ou naquela universidade, é um sistema segmentado de acordo com o aluno. O exame de saída dessa escola europeia, de quem pensa seguir universidade, é bem forte, caso do “Bac” (abreviatura de Baccalauréat), na França, do “Abitur”, na Alemanha, e assim por diante. Os sistemas são criados de tal forma que orientam o aluno nos próximos passos de sua educação básica.

E, no Brasil, o que existe de opção no momento do Ensino Médio?

Um único currículo e uma escola única, o que não pode dar certo. Os alunos são submetidos à mesma estrutura curricular que é, a propósito, excessiva, com 15 matérias obrigatórias. E, além disso, é todo mundo estudando a mesma coisa, não tem alternativa. Aquele aluno que se daria bem estudando em uma escola de orientação profissional, por exemplo, é obrigado a seguir as mesmas disciplinas do sujeito que vai prestar vestibular para a Poli! Não é possível… Daí a evasão, ninguém aguenta, a escola é horrível! Ou seja, a arquitetura do ensino está errada desde o início. E ao Ensino Médio você soma todas as fragilidades do Ensino Fundamental – professor ruim, diretor indicado por eleição, trapalhadas e tudo mais o que já se sabe.

E ainda há o problema da falta de respeito aos professores dentro da sala de aula…

Sim, há um problema gravíssimo de indisciplina em todos os níveis, porque nós somos herdeiros de maio de 1968, quando se dizia, em Paris, que era “proibido proibir”. Os professores se sentindo desconfortáveis com a ideia de colocar ordem na sala de aula… A propósito, conhece o resultado de uma pesquisa muito interessante que o Positivo fez recentemente? Foi perguntado aluno por aluno o que mais atrapalhava o aprendizado dele – e ele respondeu, “os outros fazendo bagunça!”. Então, os professores não tem coragem de aplicar disciplina nas classes, mas os alunos estão chamando a atenção para o principal problema… é o pior dos mundos!

Você teria uma espécie de receita de currículo ideal para o ensino brasileiro?

Não existe currículo ideal, existe o currículo feito de acordo com o perfil do aluno, são muitos os currículos ideais, cada aluno tem um conjunto de currículos viáveis, possíveis, melhores ou piores. Agora, esse que está aí só serve… Costumo dizer que a última pessoa que eu conheci capaz de dominar intelectualmente o currículo do nosso Ensino Médio era o Mário Henrique Simonsen, que já morreu, aliás.

Há um descompasso na passagem do Ensino Fundamental para o Ensino Médio… Você é a favor do retorno do admissão?

Não é preciso isso, a triagem dos alunos poderia ser feita de modo natural… Como o que acontece na Europa, por exemplo. Você tem um orientador que diz para o aluno que, a partir do desempenho que ele teve, seria melhor seguir as Ciências Humanas e não os cursos que exigem conhecimento em matemática; ou o inverso, já que o aluno demonstrou gosto por cálculo. O mesmo acontece nos EUA, aliás, existem três ou quatro níveis de matemática no high school e o aluno segue de acordo com sua aptidão e seu gosto, o professor pergunta ‘quer ralar?’ e, a partir daí, ele pode frequentar aulas de conteúdo mais difícil. Ou seja, existe uma base e, a partir do seu desempenho, ele continua os estudos, tirando o melhor proveito de si próprio.

Tudo muito lógico, prático. E por que esse conceito não é aplicado no ensino brasileiro?

Para começar, nós temos um Conselho Nacional de Educação que é … Bem, nem quero falar disso! Mas, é preciso virar a mesa, antes de tudo, é preciso uma lei que impeça, por exemplo, os deputados de mudarem o currículo… Soube que há 16 projetos de lei para incluir mais disciplinas, pode imaginar isso? Então, tem de existir uma lei, do gênero das Diretrizes e Bases da Educação Nacional, que impeça a obrigatoriedade de disciplinas além de Português, Matemática e Ciências.

Porque tudo é feito para defender os interesses de lobbies dos professores de matérias específicas, Sociologia, Filosofia etc. Veja, na Alemanha, não há aulas de Filosofia no ‘gymnasium’, na França, muito menos. É matéria que deveria ser opcional, pois exige raciocínio e maturidade intelectual para começar a tirar alguma coisa de positivo dali…

E o MEC, o nosso Ministério da Educação, tem ou não capacidade de colocar em andamento as mudanças necessárias?

O MEC não tem coragem de meter a mão na massa para fazer algo que vá contrariar os sindicatos e os professores etc. Mas há outro problema, em nível mais alto, que é a governabilidade e a estrutura das universidades públicas. Por que é que as particulares cresceram de uns anos para cá? Ora, as universidades públicas são muito caras, elas têm um custo médio de aluno igual ao dos países da OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) e são ingovernáveis, o reitor não manda, quem manda são os sindicatos, que nem sequer representam os professores. São muito mal geridas também… Quanto custa um aluno de universidade privada? Mais ou menos um terço em relação à da pública, que é de cerca de dois mil dólares…

Do que é que o nosso Ensino Superior mais precisa?

Precisamos de coragem, ousadia e vontade política, pensando em longo prazo. Pisar nos calos de quem quer que seja. O que não é prioridade do PT, pois ele finge que o problema não existe.

Apesar de tudo, você apontou recentemente exemplos de excelência de educação Brasil afora…

Sim, as chamadas ‘butiques de qualidade’, caso de Foz de Iguaçu e Sobral. A educação, ao nível de Ensino Fundamental, de Foz de Iguaçu está no mesmo nível dos países do OCDE, você sabia? Dois segredos de sucesso: alguém manda, está interessado em educação e tem coragem; e duas administrações seguidas, pelo menos, para as mudanças propostas terem continuidade. Em Minas Gerais, temos o exemplo da reforma educativa mais bem sucedida e ambiciosa dos últimos anos. Foram duas gestões de total continuidade mais dois governos que souberam dar prosseguimento à filosofia das mudanças… Ou seja, é possível mudar. Aqui dá para fazer muito ainda, difícil é mudar na Coreia, na Finlândia (referências de ensino).

Quer dizer que você se mantém positivo em relação à nossa educação?

Existe uma coisa misteriosa acontecendo nesta nossa terra porque, apesar dos políticos e da bagunça, há uma pulsão que faz as coisas acontecerem… E, no meio dessa esculhambação, nós avançamos. Imagine, já estamos ultrapassando a Argentina em educação, quem diria isso um dia?

*Para ler a entrevista original, acesse: http://goo.gl/m4Ee4P