Educação infantil: tremores na Base

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João Batista Araujo e Oliveira

Recente abaixo-assinado elaborado pelos autores da versão 2 da BNCC – Base Nacional Curricular Comum – sugere que teria havido um amplo debate em torno da Base e que esse debate foi descontinuado entre a 2a e a 3a versão. Confesso que minha concepção de debate é muito diferente da ideia de audiências públicas e demais mecanismos usados até o momento, e continuo crendo que a imprensa tem sido o único canal que ainda permite a expressão do contraditório. Feita a ressalva, vamos ao tema.

O Brasil difere do resto do mundo em muita coisa, e o processo de elaboração da Base, e seus resultados, não fogem à regra. Se examinarmos as propostas de educação infantil de outros países, poderemos observar duas diferenças marcantes com o que estamos fazendo em nosso País. Aqui começamos citando leis, pareceres e “conquistas” como ponto de partida. E fazemos isso sem qualquer pudor, supondo que nosso sistema educativo é maravilhoso e tem apresentado avanços notáveis. Nos países educacionalmente mais desenvolvidos, uma discussão curricular começa com um documento técnico-científico elaborado por um ou mais reconhecidos especialistas – no caso, em desenvolvimento infantil – que reveem a literatura científica e propõem linhas gerais que serão objeto de desdobramentos por especialistas em elaboração de currículos. O ponto relevante, no caso, é que o currículo da educação infantil coincide com os processos de desenvolvimento infantil – portanto, o ponto de partida consiste em identificar as experiências e estímulos necessários e suficientes para promover e assegurar o desenvolvimento.  Esse trabalho não foi feito no Brasil nem na versão I, II ou III – aqui se parte de categorias como “direitos de aprendizagem” e coisas do gênero. Até o ato de brincar – que é a forma de aprender própria das crianças – é intitulado como um “direito”. É muita sociologia para pouca psicologia.

A segunda diferença é que, em todos os países, a parte final da educação infantil – conhecida entre nós como Pré-escola – tem como um de seus objetivos a preparação para a entrada na escolaridade formal. A palavra em inglês é conhecida como “school readiness”, que, tecnicamente, equivale à “prontidão escolar”, um termo proscrito por grande parte de educadores brasileiros por conta de seu uso indevido na primeira metade do século passado. Vejamos a importância desse conceito.

As evidências acumuladas até o momento, no Brasil, mostram que as creches nada têm acrescentado em termos de aumento de chances de sucesso escolar das crianças – ricas e pobres.  Isso não surpreende, pois sabemos que, para fazer diferença, creches precisam ser excelentes e bem dosadas. Já a pré-escola, no Brasil, tem apresentado ganhos para todos, mas ganhos muito maiores para as crianças de ambientes socioeconômicos mais elevados. Mas os ganhos para os menos favorecidos não se sustentam até o final do ensino fundamental. Ou seja, se incorporamos a educação infantil no âmbito da educação básica, é importante que ela responda ao quesito da equidade. E, até aqui, ela tem contribuído para ampliar o acesso, mas também as desigualdades.

Se o Brasil efetivamente quiser usar a educação infantil como instrumento para assegurar a todas as crianças – especialmente as mais vulneráveis – condições para um desenvolvimento infantil adequado e prepará-las para aumentar suas chances de sucesso escolar, é preciso repensar radicalmente a proposta de educação infantil. O ponto de partida não devem ser leis e pareceres e jargões consolidados, mas os conhecimentos da ciência do desenvolvimento humano, especialmente do desenvolvimento infantil, extensamente ampliados nas últimas décadas. E também cabe contemplar o muito que sabemos sobre os preditores do sucesso escolar.  Tendo esse entendimento devidamente articulado em uma proposta consistente, cabe convocar especialistas para debatê-la em fóruns adequados e, depois de devidamente considerado o contraditório, passar pelo crivo dos profissionais que atuam na ponta, para afinar os detalhes considerando as vicissitudes da implementação.

Dificilmente o Brasil tomará esse rumo. Será mais uma oportunidade perdida. Com os perdedores de sempre.

Confira o post no blog Educação em Evidência, da Veja.com, em 8 de setembro sobre o Dia Mundial da Alfabetização.