Estudo pioneiro mostra que importância da leitura para crianças pequenas vai além do aumento do vocabulário

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leitura para crianças

A revista científica Pediatrics acaba de publicar os resultados de um estudo pioneiro que avaliou o impacto de um programa brasileiro de incentivo à leitura voltado para famílias de baixa renda com crianças pequenas. O estudo foi realizado por pesquisadores do Instituto Alfa e Beto em parceria com a Faculdade de Medicina da Universidade de Nova York (NYU). Editada pela Academia Americana de Pediatria, a Pediatrics é uma das publicações mais importantes do mundo na área do desenvolvimento infantil.

Os resultados surpreenderam os pesquisadores. Além dos ganhos esperados no vocabulário das crianças, o estudo registrou impacto relevante na qualidade do relacionamento dos adultos com as crianças, reduzindo a violência dentro de casa. Foram observados, ainda, impactos significativos no desenvolvimento cognitivo e no QI (quociente de inteligência) das crianças. Realizado entre 2014 e 2015 no município de Boa Vista (RR), o estudo envolveu beneficiários do Programa Bolsa Família atendidos pelo Programa Família que Acolhe (FQA), uma política de Primeira Infância implementada com a colaboração do Instituto Alfa e Beto.

“Diversos estudos americanos já mostraram que a leitura é um ótimo contexto para promover o desenvolvimento da linguagem da criança e prepará-la posteriormente para a alfabetização. No entanto, nos países de baixa ou média renda, são poucas as intervenções que focam na leitura. Este trabalho mostra que um programa de leitura entre pais e filhos pode ser exitoso quando implementado em países em desenvolvimento e em um contexto de população de baixa renda e escolaridade”, explica Adriana Weinsleder, uma das pesquisadoras da NYU que assinaram o artigo publicado na Pediatrics.

O estudo

O ponto de partida do estudo foram as Casas-mãe de Boa Vista, instituições de ensino e cuidado que funcionam como creches e que atendem crianças de dois a quatro anos de idade, cujas mães são atendidas pelo FQA. Todas as 22 Casas-Mãe do município foram envolvidas no estudo, totalizando, no início do estudo, 660 famílias. Os resultados foram descritos a partir da análise de 566 famílias, sendo 279 participantes da intervenção e 287 compondo o chamado grupo controle (crianças matriculadas na creche e que não receberam programa de leitura). Vale dizer que o estudo contou com a análise de um grupo controle adicional, cujos participantes foram sorteados aleatoriamente entre as famílias que se encontravam na fila de espera por vagas.

Para o estudo, as famílias que participaram da intervenção receberam treinamentos ao longo do ano sobre como ler para crianças pequenas. Esses treinamentos consistiam em sessões de aproximadamente 90 minutos e incluíam demonstrações, análise de vídeos de leitura pelos pais, dramatização e troca de experiências. Além do treinamento, as famílias recebiam semanalmente dois livros emprestados pelas Casas-Mãe para serem lidos em casa.

“Na intervenção, ensinamos e encorajamos o desenvolvimento de estratégias de leitura – não de contação de histórias ou de dramatização. E tratamos a leitura de uma forma muito especial: com interação. Há dois mediadores entre o adulto e a criança – o livro e a linguagem utilizada. O adulto deve ressaltar e reforçar a linguagem do livro, inclusive a linguagem visual, e estimular a criança a desenvolver a sua linguagem. Daí a expressão leitura interativa, cujo objetivo é desenvolver o gosto e o hábito pela leitura”, conta Denise Rocha, pesquisadora do Instituto Alfa e Beto.

Os pais também eram livres para trocarem experiências – e, de fato, foram muitas as mensagens, inclusive na forma de vídeos, enviados entre eles por meio das redes sociais. No total, foram realizadas nove sessões de treinamento e, em média, os pais participaram de cinco sessões. As crianças leram aproximadamente 20 livros ao longo do experimento. Para acompanhamento dos pesquisadores, foram realizados testes e aplicados questionários junto às crianças e pais antes e depois da intervenção.

Principais resultados

O estudo mostrou que, no grupo que participou da intervenção, as crianças interagiram mais e melhor com seus pais, desenvolveram mais vocabulário e tiveram incremento expressivo na memória de trabalho e na inteligência (QI) quando comparadas com as crianças do grupo controle.

O resultado mais importante foi o tamanho e a extensão do impacto. Na dimensão que mede a qualidade das interações, o tamanho do efeito foi superior a meio desvio padrão, enquanto que para vocabulário e inteligência, o efeito foi acima de um terço de um desvio padrão.

O desvio padrão é uma unidade de medida usada em pesquisas científicas que permite comparar o tamanho do impacto de uma intervenção. Na área educacional, a maioria das intervenções não apresenta diferenças significativas, e são raras as que atingem mais do que 0.4 (quarenta por cento) de um desvio padrão. No caso deste experimento, três medidas tiveram impacto superior a 0.4 de um desvio padrão. Apenas para dar uma ideia da dimensão do efeito: um ano escolar normalmente aumenta 25% de um desvio padrão no desempenho escolar das crianças.

 “Prevíamos identificar um incremento na relação entre pais e filhos, e também no desenvolvimento das crianças. Mas nos surpreendemos, principalmente, com o grande impacto na inteligência (QI) das crianças. Este foi um resultado bastante expressivo”, diz Adriana Weisleder, da NYU.

O resultado mais previsível foi o impacto no desenvolvimento verbal, especialmente no vocabulário receptivo das crianças. Ou seja, elas demonstraram um avanço na compreensão do sentido das palavras a elas dirigidas.

“Isso é natural na medida em que os pais foram treinados em técnicas de leitura interativa, puxando a conversa para permitir uma explicação melhor do que está no livro e fazendo relações entre as histórias ou ilustrações e acontecimentos do mundo real, fora dos livros. Esse experimento comprova o fato de que não basta estimular os pais a lerem com os filhos. Há métodos e técnicas que propiciam ganhos mais robustos”, diz João Batista Oliveira, presidente do IAB.

Um outro resultado refere-se à mudança no comportamento emocional, avaliado pela mudança nos padrões de relacionamento entre pais e filhos. No grupo que participou do experimento, houve redução significativa no uso de violência física pelos pais das crianças. Este fenômeno já havia sido identificado em estudos anteriores, conduzidos pela equipe da NYU, mas a intensidade observada no Brasil foi maior do que a esperada.

A pesquisadora Adriana Weisleder explica: “Estudos conduzidos nos Estados Unidos sugerem que, quando os pais se envolvem mais em atividades positivas com seus filhos, como a leitura e a brincadeira, há um efeito positivo na relação entre eles, e diminui o estresse parental. Uma das nossas hipóteses é de que mais envolvimento com a leitura leva a mais interações positivas entre pais e filhos, e isso reduz as punições físicas. Outra possibilidade é que o envolvimento com a leitura tenha melhorado o comportamento das crianças e, assim, levado a uma diminuição nas punições físicas”, diz.

O terceiro resultado importante refere-se ao aumento significativo de QI constatado em um teste. Cabe ressaltar que o QI, embora seja uma medida bastante estável, é particularmente instável nos primeiros anos de vida – e isso se deve exatamente à sua modificabilidade. As crianças do grupo experimental tiveram um ganho significativo. Para dar uma ideia desse ganho: antes do experimento, elas estavam a meio caminho entre uma criança brasileira média e uma criança no nível fronteiriço medido por testes de inteligência. Ao final do experimento, as crianças do grupo experimental estavam próximas à média da população como um todo – diferentemente das demais, que permaneceram onde estavam.

“Este é um ganho expressivo, mas que também decorre da qualidade da intervenção: os resultados sugerem que as crianças foram estimuladas a raciocinar, pois o teste utilizado (S.O.N) mede a capacidade de raciocínio independentemente da capacidade verbal”, explica João Batista Oliveira. Porém, segundo o presidente do IAB, é importante ressaltar que esses ganhos não são permanentes – para manter esse tipo de avanço, a criança precisa permanecer em um ambiente estimulante.

Implicações

O estudo mostra que um programa focado em leitura em voz alta, combinado com um currículo de qualidade nas creches, tem impactos significativos nas relações entre pais e filhos, e no desenvolvimento cognitivo e de linguagem de crianças em contexto de pobreza e vulnerabilidade. Mas isso só vale para intervenções baseadas em evidências robustas e implementadas com rigor. Só dessa forma se produzem efeitos que se estendem ao longo da vida e, certamente, aos futuros filhos de quem participa de programas de alta qualidade.

“Os impactos no vocabulário e no QI das crianças antes mesmo de elas ingressarem na educação formal tendem a aumentar os resultados acadêmicos delas no futuro, bem como a sua produtividade econômica na vida adulta. Embora essa intervenção tenha sido implementada em um contexto de creche, ela pode ser replicada em outros espaços comunitários”, diz Alan Mendelsohn, diretor de pesquisas do Departamento de Pediatria da Universidade de Nova York, que também assina o estudo. “Acredito que há um enorme potencial para escalar esse programa no Brasil e em outros países”.

Walfrido Neto, da equipe do Instituto Alfa e Beto, complementa: “Foi muito bom perceber que, em um contexto onde geralmente o livro é tido como algo chato e muito distante da realidade das famílias mais humildes, os pais puderam enxergá-lo como um importante aliado na interação e conexão de qualidade com os filhos. Isso nos faz acreditar que é possível transformar realidades desfavoráveis com iniciativas bem embasadas, planejadas e coordenadas”.

Três importantes conclusões sobre o estudo
  1. É importante que os pais leiam para os filhos, e isso vale para todas as famílias, especialmente para as famílias com menor nível de escolaridade e instrução, ou casais sem experiência com crianças pequenas. Mas apenas ler não basta.
  1. A forma como se faz a leitura e como relacionar a leitura com outras conversas entre adultos e crianças gera efeitos muito importantes, tanto no desenvolvimento da linguagem quanto no desenvolvimento emocional. Ela ajuda os pais a dialogarem de forma mais efetiva com as crianças – reduzindo o uso do “não” e da violência – e a estimularem o vocabulário, a imaginação, a inteligência e a sensibilidade da criança.
  1. Programas de incentivo à leitura podem ter seus efeitos ampliados se os pais receberem orientações comprovadamente eficazes sobre a forma de interagir com o livro.

 

Leitura desde o berço: o pioneirismo do Instituto Alfa e Beto

Ler para bebês deve ser um hábito a ser formado da mesma maneira que ensinamos as crianças a comer, dormir, tomar banho. Ler para bebês ajuda no desenvolvimento da linguagem e, consequentemente, no sucesso escolar. Os efeitos da leitura são duradouros. Independentemente de outras características intelectuais ou socioeconômicas, estudos demonstram que, aos 10 anos de idade, crianças que adquiriram o hábito de leitura aos três anos apresentam desempenho escolar superior àquelas que não viveram a mesma experiência.

O estudo publicado recentemente na revista especializada Pediatrics por pesquisadores do Instituto Alfa e Beto e da Universidade de Nova York mostra que crianças cujos pais leem para e com elas apresentam mais vocabulário, memória de trabalho e QI do que aquelas cujos pais não leem. E mais: nos lares onde a leitura é um hábito, há menos punições físicas – o que pode resultar em menor violência doméstica e em uma série de benefícios adicionais.

Aos poucos, essas e outras evidências vêm ganhando espaço no Brasil, vencendo o senso comum de que ler para crianças que ainda não falam ou não leem é perda de tempo. Desde a sua fundação, há quase 12 anos, o Instituto Alfa e Beto trabalha para que a leitura esteja presente em todos os lares e seja uma prioridade nas políticas públicas voltadas para a Primeira Infância. Em sua trajetória, foram diversas as ações em busca desse objetivo, desde a publicação de guias e cartilhas até a colaboração com iniciativas inovadoras espalhadas pelo Brasil.

Em 2010, o Instituto Alfa e Beto levantou a bandeira da leitura desde o berço com a publicação do Guia IAB de Leitura: os 600 livros que toda criança deve ler antes de entrar para a escola, e com a Cartilha Primeira Infância, Primeiras Leituras. Ambas as publicações foram lançadas na Bienal Internacional do Livro, em São Paulo, onde o Instituto organizou a Biblioteca do Bebê.

No mesmo ano, foi realizado o II Seminário Internacional de Instituto Alfa e Beto, que trouxe ao Brasil a pesquisadora americana Perri Klass. Docente da Universidade de Nova York, Klass coordena o programa Reach Out and Read, maior programa de leitura para crianças do mundo e que hoje impacta mais de 4,7 milhões de crianças nos Estados Unidos – incluindo 25% de todas as crianças em situação de pobreza naquele país. “Foi uma ótima experiência poder discutir o modelo do programa Reach Out and Read de leitura em voz alta nos cuidados pediátricos primários com os profissionais do Instituto Alfa e Beto, que desejam levar esse conhecimento para as crianças do Brasil”, relembrou Perri Klass na ocasião dos 10 anos do IAB.

Nos anos seguintes, nasceram as propostas do IAB para a educação infantil, fortemente calcadas nas evidências sobre a importância da leitura para o desenvolvimento cognitivo, social e de linguagem das crianças. O currículo desenvolvido pelo Instituto norteia os programas Zero a Três e Alfa e Beto de Educação Infantil, sendo referência por seu foco, rigor e coerência.

Em 2013, o Instituto Alfa e Beto passou a colaborar com a Prefeitura de Boa Vista (RR) no âmbito do Programa Família Que Acolhe (FQA), uma iniciativa pioneira de atendimento à Primeira Infância que abrange diferentes intervenções desde a gestação até o fim da pré-escola. Dentro do FQA, nasceu o programa do IAB de estímulo à leitura. Com o empréstimo de dois livros semanais, as famílias cujas crianças são atendidas pelo sistema de creches municipais são estimuladas a ler. A partir desta intervenção, desenvolveu-se a parceria com a Universidade de Nova York para uma avaliação de impacto que agora é de conhecimento de todo o mundo.

Mas, afinal, qual o segredo da leitura? São dois. O primeiro tem a ver com os próprios livros – eles são escritos com uma linguagem mais parecida com a linguagem da escola. A criança amplia o vocabulário e se habitua a estruturas sintáticas mais complexas. Segundo, livro é um excelente veículo para promover a interação entre adultos e crianças, entre pais e filhos. A mistura dos dois ingredientes – livros e interações – é o que torna este hábito tão potente. Brincar e conversar também ajudam, mas conversar com e em torno de livros ajuda ainda mais.