O presidente, o ministro e o analfabetismo

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Escola emocional

Nota do Instituto Alfa e Beto:
Este artigo foi publicado originalmente no jornal O Estado de S. Paulo

A mídia noticiou, recentemente, que o presidente Lula cobrou de seu ministro da Educação ações e resultados mais eficazes no combate ao analfabetismo entre adultos. Infelizmente, esse não é um assunto que se resolve por decreto. E, não por acaso, inexistem avaliações e resultados desse tipo de programa nas últimas décadas. Trata-se de uma guerra perdida. Será possível vencer pequenas batalhas apenas em determinadas situações em que há chance de sucesso. O realismo do ministro é mais pertinente que o sonho do presidente. Mas há um porém.

Não é esse o analfabetismo mais preocupante. O que compromete o nosso futuro como Nação são os milhões de brasileiros matriculados no ensino fundamental, especialmente nas séries iniciais, que são incapazes de escrever uma frase ditada pelo professor ou de ler um texto e explicar o seu conteúdo. Esse problema é muito maior e muito mais grave do que o anterior. Enquanto não for resolvido na base, todos os demais esforços para melhorar a educação serão desperdiçados.

Se usarmos a definição do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa) – teste realizado com jovens de 15 anos -, quase 60% dos brasileiros são analfabetos funcionais, ou seja, embora conheçam o alfabeto, não sabem fazer uso adequado dele no seu dia a dia. As pesquisas anuais do Instituto Montenegro vão na mesma direção: pouco mais de 30% das pessoas que circulam pelas ruas compreendem o sentido de textos simples. A média de escolaridade desse público é próxima da média de idade dos alunos que fazem o Pisa. Isso significa que o Brasil continua a produzir essa proporção de analfabetos escolarizados.

Se usarmos a definição do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) para a 4ª série, constatamos que cerca de 30% dos alunos chegam ao fim dessa etapa sem conhecer o alfabeto e cerca de 80% são analfabetos funcionais. São eles que alimentam as estatísticas descritas no parágrafo acima.

Por que o Brasil não consegue alfabetizar os seus alunos? Seria fácil atribuir ao estado geral da educação pública, que não oferece ensino de qualidade. Embora correta, essa resposta é parcial e insatisfatória, dado que é muito mais fácil alfabetizar as crianças do que ensiná-las a fazer uma redação ou a compreender um texto. Além disso, a alfabetização é menos afetada pelos fatores extraescolares e, portanto, depende muito mais do que a escola efetivamente é capaz de fazer. Descartada a geleia geral como álibi, cabe examinar o mérito da questão.

Na maioria dos países do mundo, e certamente nos países da OCDE, há clareza sobre o que é alfabetizar. Consequentemente, nesses países há determinações claras a respeito da série em que as crianças devem ser alfabetizadas. Isso se dá no 1º, no 2º ou no 3º ano da escolarização formal. A variação depende exclusivamente da complexidade ortográfica de cada língua. Quanto mais simples a ortografia, mais comum é alfabetizar aos seis anos de idade. A regra de ouro é alfabetizar na hora certa. Quanto mais tarde o processo se der, mais difícil será.

No Brasil não há clareza nem determinações a respeito do que seja alfabetizar. Há documentos oficiais que afirmam tratar-se de “processo permanente”. Também se confunde alfabetizar, isto é, ensinar a ler, com ensinar a compreender. Essa confusão leva os educadores brasileiros a ignorarem o fato de que grande parte da dificuldade de compreender se deve à dificuldade de ler. Em consequência da confusão conceitual, não há diretrizes oficiais a respeito de quando se deve alfabetizar. Para aumentar a confusão, há metas bem-intencionadas, mas vagas, que se referem a “alfabetizar todas as crianças até os 8 anos de idade”. O que significa isso? Será que as pessoas que definem tais metas para a escola pública colocariam seus filhos nela?

Nos demais países também há determinações claras sobre como se deve alfabetizar e sobre a importância de materiais e, especialmente, de métodos adequados para isso. Pesquisas realizadas nos últimos 20 anos são inequívocas a respeito da superioridade dos métodos fônicos.

Aqui, os governos de todos os níveis e a “comodidade acadêmica” continuam a ignorar essas evidências e a repetir palavras de ordem no lugar de ensinar aos futuros professores o que há de mais atualizado sobre o tema. Lavam-se as mãos em nome da “autonomia” do professor e das escolas.

Na maior parte das nações desenvolvidas, salvo raras exceções, os professores são formados e orientados para utilizar métodos de alfabetização consistentes com os conhecimentos científicos mais atualizados. Nossos alfabetizadores ou não recebem nenhuma formação ou recebem formação eminentemente teórica e baseada em conhecimentos científicos equivocados e ultrapassados. As próprias capacitações patrocinadas pelo Ministério da Educação se baseiam em documentos elaborados por instituições acadêmicas que continuam a disseminar essas ideias. Mais grave, a função de alfabetizador frequentemente é atribuída a professores inexperientes ou a estagiários sem nenhuma formação específica.

É bom que um presidente da República se incomode com os intratáveis problemas do analfabetismo dos adultos. Mas o incômodo presidencial passa e o analfabetismo continua. A única maneira de acabar com o analfabetismo adulto é eliminar o analfabetismo escolar. Isso é algo que se deve e se pode fazer no 1º ano do ensino fundamental. Se decidirmos fazer isso a partir de 2010, em 2018 teremos a primeira geração de brasileiros que concluirá o ensino fundamental sem contar com analfabetos escolarizados em suas fileiras. Esse, sim, um sonho olímpico que vale a pena sonhar.