Aprender a ler não é algo natural

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“Alfabetização: aprender a ler não é natural como engatinhar e andar”. Este é o título de um artigo publicado hoje no jornal Zero Hora, do Rio Grande do Sul. O artigo é assinado por Augusto Buchweitz, pesquisador do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul, que, em meio à retomada das discussões sobre métodos para alfabetizar, defende que há fartas evidências tanto no Brasil quanto em outros países demonstrando que algumas habilidades da criança se desenvolvem naturalmente – como, por exemplo, balbuciar, engatinhar e passar a andar e falar. Já aprender a ler não é algo natural.

“Evidências mostram que ensinar sistematicamente relações sons-símbolos (método fônico) é a maneira mais efetiva de alfabetizar; e mais, é ainda mais efetiva para crianças desfavorecidas. Estas evidências resultam de estudos de milhares de crianças alfabetizadas pelo mundo”, diz.

O artigo publicado pelo Zero Hora foi produzido a partir de um texto (reproduzido abaixo) de autoria do próprio Augusto Buchweit em parceria com Jaderson Costa da Costa, diretor do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul; Vitor Haase,professor da Universidade Federal de Minas Gerais; e João Batista Oliveira, presidente do Instituto Alfa e Beto.

Na alfabetização, método é fundamental

Em matérias recentes sobre educação tem se discutido a adoção do método fônico de alfabetização, e repetidamente lê-se a seguinte afirmação, apócrifa: o método fônico é considerado retrógrado pela academia. Ao lado da questão do método, também voltou com força a discussão sobre a idade de se alfabetizar – deve ser mesmo a partir dos 6 e até os 7 anos de idade? A questão da idade é menos simples que parece, pois o processo de alfabetização começa antes da instrução formal. O entendimento dessas duas questões está entrelaçado por evidências científicas, de um lado em relação ao cérebro humano e às habilidades que desenvolvemos naturalmente e, de outro, em relação às que precisamos de instrução para aprender.

O ponto chave da discussão é: aprender a ler não faz parte das habilidades às quais o nosso cérebro está naturalmente preparado para desenvolver. A criança balbucia, engatinha, fala frases e passa a andar e a falar naturalmente. Linguagem oral e habilidades motoras fazem parte das habilidades que o nosso cérebro está preparado para desenvolver – já a leitura, não. Não é possível assimilar o código escrito sem instrução. O método fônico leva em consideração este fato: ler não é natural para o cérebro humano. É preciso ensinar sistematicamente as relações entre os sons e os símbolos da ortografia, e suas combinações.

Estudos mostram que o método fônico é o mais efetivo para alfabetizar e formar bons leitores. Além disso, a adoção do método se mostrou ainda mais efetiva na alfabetização de crianças mais vulneráveis, mais pobres. Muitas destas crianças chegam ao ensino fundamental sem terem, sequer, tocado em um livro. É para estas que a adoção do método fônico é ainda mais significativa. Sobre ter contatos com livros, o processo de alfabetização, na verdade, começa antes da instrução formal. A criança precisa ser imersa em livros, ouvir histórias para que assimile os sons da língua e desenvolva o vocabulário e o gosto pela leitura.  Qual a melhor maneira de preparar uma criança para ler? É ler para a criança.  Esta atividade simples, barata e fundamental precisa ser incorporada na pré-escola, que deve ser aliada da alfabetização. Pensar a pré-escola como aliada tem relação direta com a plasticidade do cérebro humano, que representa sua capacidade de adaptação e subjaz à capacidade de aprender. Nas regiões do cérebro que formam a “rede da linguagem”, esta plasticidade é ótima na infância, mas diminui significativamente a partir desta fase da vida. A infância é a melhor idade para que a criança tome consciência dos sons da língua, uma habilidade fundamental para a alfabetização.

A defesa do método não é ideológica – é científica; mas também não é ingênua a ponto de pensar o método como uma bala de prata. Stanislas Dehaene, neurocientista renomado e integrante do conselho científico para a educação da França, afirma: o método fônico é o único método para se alfabetizar. José Morais, há décadas um cientista da leitura, tem defendido a importância da alfabetização baseada em evidências. A Academia Brasileira de Ciências produziu um livro sobre aprendizagem infantil, com as evidências que apoiam a adoção do método fônico. Cientistas brasileiros e estrangeiros produziram um relatório para o congresso brasileiro com as evidências da ciência cognitiva da alfabetização. Steven Pinker, linguista e escritor, recentemente endossou um artigo do New York Times que defendia a alfabetização pelo método fônico. E, assim por diante, a academia defende o método fônico, exaustivamente.

Algumas críticas são recorrentes. “Adotar um método fere a autonomia das escolas”. Este tipo de crítica formal tem de ser pensado fora da simplificação legislativa ou política que representa. Não tem base alguma em ciência. A adoção do instrumento mais adequado para alfabetização não subtrai a autonomia das escolas, muito menos dos professores. A adoção de instrumentos ineficazes, isto sim, açoda o professor em problemas ainda maiores. É importante lembrar e relembrar que o método fônico não bate escanteio e vai cabecear – portanto, ele não vai resolver todos os problemas da alfabetização no Brasil (e nunca se afirmou que resolveria). Mas a não adoção do melhor método faz parte do problema, assim como a ausência da leitura para a criança.  Sobre a idade ideal, ouve-se que uma criança não tem maturidade para ser alfabetizada aos 6 anos, ou que começar mais cedo atrapalharia o seu desenvolvimento.  Estas críticas não têm base em evidência alguma. São opiniões, nada mais. Não há evidência de prejuízo algum ao desenvolvimento motor, emocional, ou qualquer que seja, se uma criança for alfabetizada aos 6 anos.  O contrário é mais próximo da verdade.

Evidentemente as cartilhas de método fônico das décadas de 70 e 80 estão ultrapassadas. Há uma gama de evidências linguísticas para ajustar a sistematização de como ensinar. Se na França o conselho científico defende o uso do método fônico, a implementação é feita com materiais recentes; se na Finlândia se adota o método fônico, também se desenvolveu um software educacional, chamado Graphogame. Este software foi desenvolvido na universidade de Jyväskylä (academia, portanto) e reforça as relações entre fonemas e grafemas. O Graphogame foi levado para regiões vulneráveis da África, no Quênia, na Tanzânia e Namíbia, onde se mostrou efetivo. Também no Brasil existem jogos e materiais didáticos mais recentes, já devidamente avaliados e consistentes com essas evidências. Seriam, portanto, os franceses e os finlandeses retrógrados e autoritários? Evidentemente que não.

O retrocesso não está na adoção do método fônico e seus princípios para guiar a alfabetização. O retrocesso está em fechar as portas da educação no Brasil para a ciência. Estas portas fechadas fecham ainda outras portas, principalmente para as crianças mais pobres e menos favorecidas – aquelas que chegam à escola sem terem visto um livro. Para elas, a evidência mostra que a adoção do método fônico é ainda mais fundamental. É preciso, portanto, um pouco mais de luz – e menos dogmas – na educação.

Augusto Buchweitz

Pesquisador do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul

Jaderson Costa da Costa

Diretor do Instituto do Cérebro do Rio Grande do Sul

Vitor Haase

Professor da Universidade Federal de Minas Gerais

João Batista Oliveira

Presidente do Instituto Alfa e Beto