Você sabe o que é fluência de leitura?

53329

“A fluência de leitura é um componente importante do ensino da língua – é o elo que une a alfabetização com a compreensão do texto. Ela leva à leitura automática – e isso é uma condição essencial para a compreensão”, explica o Prof. João Batista Oliveira, Presidente do Instituto Alfa e Beto.

DEFINIÇÃO

Fluência é a facilidade para reproduzir oralmente uma sequência de palavras escritas presentes em uma lista ou em um texto organizado. A facilidade é definida pela precisão, rapidez e automaticidade no reconhecimento das palavras. O relatório do National Reading Panel publicado pelo NICHHD (2000) define fluência como “a habilidade de ler um texto rapidamente, com precisão e expressão adequada”. Armbruster, Lehr e Osborn (2001, p 22) assim descrevem as características de uma leitura fluente: “fluência consiste na habilidade de ler um texto com precisão e rapidez. Quando um leitor fluente lê em silêncio, ele reconhece automaticamente as palavras. Ele agrupa as palavras rapidamente de maneira a extrair o sentido do que lê. O leitor fluente também lê em voz alta sem esforço e com expressão. Sua leitura soa natural, como se ele estivesse falando”. Reconhecimento de palavras e prosódia constituem a essência de uma leitura fluente.

 

O OBJETIVO DA LEITURA INFLUENCIA A VELOCIDADE

A fluência é a ponte entre o reconhecimento de palavras e a compreensão de um texto. O reconhecimento automático permite que o cérebro concentre sua atenção na compreensão. Mas existem diferentes propósitos de uma leitura, e esses diferentes propósitos afetam o grau de compreensão e o nível de fluência necessário para uma leitura eficaz.

Uma leitura feita para memorizar o texto é mais lenta e raramente atinge mais de 100 palavras por minuto. A leitura para compreensão varia de 100 a 200 palavras por minuto, e depende muito da dificuldade do texto, o que, por sua vez, está relacionado com os conhecimentos prévios do leitor. A leitura dinâmica, para se ter ideia do conteúdo do texto, pode atingir de 350 a 400 palavras por minuto (Carver, 1990).

 

OUTROS FATORES QUE INFLUENCIAM A VELOCIDADE

Martelli (2014, pp. 14 a 28) analisa três fatores que delimitam a velocidade da leitura. O primeiro deles refere-se às limitações do nosso equipamento visual.

A leitura se dá por sacadas e fixação. As sacadas (ou varredura) são limitadas pela capacidade de percepção visual e movimento visual: nossa capacidade se limita a 4-5 letras em torno do ponto de fixação. O tempo na fixação depende da capacidade de processamento e varia com a natureza do texto e a condição do leitor – a partir de 300 palavras por minuto é reduzida significativamente a capacidade de compreensão.

O segundo fator refere-se ao tipo, tamanho, posição e espaçamento da letra. Fontes como a courier possuem um índice de complexidade de 100, comparado com 67 da Helvética. Tamanho, posição e espaçamento entre as letras também afetam a velocidade de reconhecimento das letras e a leitura, especialmente entre os leitores mais jovens.

O terceiro fator refere-se ao tamanho de letras na palavra – por volta do 5o ao 6o ano escolar, o tamanho da palavra deixa de afetar a velocidade da leitura e os jovens estudantes adquirem os mesmos níveis do leitor hábil.

 

INDICADORES

A fluência de leitura é aferida pelos indicadores de rapidez, precisão e prosódia, que são encontrados em diferentes questionários de leitura ou IRIs (Informal Reading Inventories tais como os desenvolvidos por Johnson, Kress & Pikulski (1987) e Pikulsky (1990).

A velocidade se mede em palavras por minuto (ppm). Existem escalas para aferir a velocidade de leitura esperada em diferentes etapas da trajetória escolar. A escala Oral Reading Fluency (Hasbrouck e Tindal, 1992), nos Estados Unidos, apresenta uma expectativa que varia de 60 a 150 palavras por minuto para crianças do 1o ao 5o ano, com um avanço médio de 20 a 30 palavras por ano, chegando a 180 palavras por volta do 8o ano. Um estudo realizado em Portugal com alunos das séries iniciais do ensino fundamental chegou a indicadores semelhantes (Castro, 2015, p. 68).

A precisão se mede pelo número de acertos e erros. Uma leitura proficiente implica pelo menos 95% de palavras lidas sem erros, tropeços, hesitação ou engasgos. O número de erros afeta a velocidade – quanto mais erros, menor a velocidade. O número de erros também afeta a compreensão.

Erros são problemas de leitura associados a dificuldades de decodificação – seja pelo fato de o leitor não ter adquirido a capacidade de identificação automática das palavras, seja por dificuldades das próprias palavras, como no caso de uma palavra multissilábica ou termos técnicos foneticamente complexos e pouco conhecidos, seja por dificuldades de identificar palavras ou de deficiências em outras habilidades básicas de leitura, tais como ler decodificando, ler silabando, ler saltando palavras e ler trocando palavras.

A prosódia refere-se à qualidade da leitura de textos conectados, e inclui ritmo e entonação adequada à frase e ao tipo de texto. Por exemplo, uma poesia se lê com entonação diferente de um aviso. O ritmo deve refletir as estruturas e relações sintáticas das palavras na frase, bem como a arquitetura do próprio texto.

A prosódia enfatiza o uso apropriado da frase e da expressão (Dowhower, 1991; Schreiber, 1991). Quando um leitor lê com volume, tom, ênfase, fraseamento e outros elementos da expressão oral, ele evidencia que está lendo e interpretando uma passagem de texto – semelhante ao que fazem os músicos ao interpretar uma pauta musical. A prosódia envolve não apenas os elementos técnicos como entonação e ritmo, mas reflete um sentido que o leitor atribui ao texto.

A conhecida anedota do filho que telegrafa ao pai para pedir dinheiro ilustra o fato. A simples frase “papai, mande dinheiro” era entendida como um pedido rotineiro e normal, pelo filho (“papai, mande dinheiro”), um pedido rude e arrogante, tal como percebido pelo pai, (“papai, mande dinheiro”) e um pedido suplicante, tal como intermediado pela mãe (“papai, mande dinheiro”). Outro exemplo: o sinal de pontuação ao final da frase muda a entonação das palavras. Uma frase interrogativa pode mudar inclusive a entonação das primeiras palavras. Outro exemplo: sujeito e verbo nunca são separados por vírgula, e a leitura deve refletir essa regra.

A rigor, podemos ler um texto com boa prosódia mesmo que não conheçamos todo o teor de uma mensagem – da mesma forma que podemos ler mal um texto cujo conteúdo conheçamos muito bem. Os âncoras dos programas de televisão são um exemplo disso – embora, por vezes, não percebam ou só percebam a entonação adequada ao texto depois que já é tarde. Uma leitura fiel ou uma leitura excepcional requer um entendimento adequado do texto.

A prosódia é uma medida subjetiva – mas nem por isso menos importante para avaliar a fluência de leitura.

 

FLUÊNCIA E LEITURA: O CÍRCULO VIRTUOSO

Fluência facilita a leitura e a leitura facilita a fluência. Por isso, a recomendação usual para desenvolver fluência consiste em ler muito. Mas essa relação não é linear nem causal: é uma condição necessária, mas não suficiente. Uma pessoa pode ler várias palavras por minuto, com velocidade adequada, sem errar e sem hesitar – mas também sem compreender seu sentido. Muitas pessoas podem ler textos conectados – até mesmo poemas ou textos em língua estrangeira – sem compreender o seu sentido.

E há pessoas plenamente capazes de compreender o sentido profundo de um texto – ou um poema – sem ser capazes de lê-lo de maneira fluente ou expressiva. Em outras palavras: a fluência de leitura facilita a compreensão de textos, mas não é suficiente para assegurá-la. Para a compreensão são necessários outros fatores, inclusive e particularmente o domínio do vocabulário que, por sua vez, está fortemente associado com o domínio de determinado conteúdo ou área de conhecimento. Embora virtuoso, esse ciclo não se instaura de forma automática, e muitos leitores – talvez a maioria – raramente chegam a níveis adequados de fluência.

 

DESENVOLVIMENTO DA FLUÊNCIA: REQUISITOS

O desenvolvimento da habilidade de fluência de leitura não é algo que evolua com o tempo – essa habilidade depende de prática e de alguns requisitos. O primeiro é a capacidade de decodificação. Para ler com fluência é preciso ser capaz de identificar automaticamente a palavra. Portanto, a leitura fluente de textos tem como pré-requisito a leitura fluente de palavras (Stanovich, 1991). A leitura fluente de palavras também depende de um bom conhecimento da morfologia, especialmente de prefixos e sufixos. Além disso, é necessário conhecer algumas regras relacionadas com a leitura de palavras conectadas. Algumas dessas regras têm a ver com a pronúncia – a elisão é um exemplo. Quando dizemos “as” o /s/ final tem som de /SS/. Mas se falamos “as asas” ele terá o som de /z/. Quando lemos “correr” ou “correr amanhã” ou “correr rápido”, o som do /r/ irá mudar de acordo com a palavra que vem depois. Conhecimentos sobre regras de pontuação e sintaxe, e a mobilização dos próprios conhecimentos pertinentes ao sentido do texto, também são essenciais para levar a uma boa leitura com compreensão (Samuels, 2002).

Como desenvolver fluência de leitura: os bons leitores. Há evidências de que nos estágios iniciais da aprendizagem da leitura, reler um mesmo texto é mais produtivo do que ler vários textos diferentes (Downhower, 1001). O exemplo e modelagem de uma boa leitura desempenham papel essencial. Rasinski (2003) compilou diferentes estratégias usadas por professores, embora não haja confirmação empírica de sua eficácia. Em seu brilhante livro “Como um Romance”, Daniel Pennac (1993) ilustra como um grande professor é capaz de encantar seus alunos e seduzi-los para o mundo dos livros por meio de leituras bem feitas em sala de aula.

Para além disso, as evidências sobre como desenvolver fluência, especialmente entre pessoas com dificuldade de leitura, são menos robustas, mas essenciais para ajudar as pessoas com dificuldade de leitura.

Como desenvolver fluência nas pessoas com dificuldade de leitura: os maus leitores. Alguns estudiosos se baseiam no entendimento de que a leitura não fluente se torna penosa e desencoraja o leitor de continuar a ler. Leitura penosa refere-se tanto à leitura muito lenta quanto à leitura que não leva à compreensão.

Com base nesses argumentos, diferentes autores (Kuhn & Stahl, 2000) desenvolverem os conceitos de nível de frustração, nível de leitura independente e nível de leitura para o ensino. Esses conceitos referem-se à dificuldade de compreensão, não de velocidade. O nível de frustração ocorre quando o leitor tem dificuldade em entender mais de 10% das palavras. A leitura se torna problemática, difícil e com pouca chance de compreensão. O nível de leitura independente é o da leitura fácil, com 5% ou menos de erros de leitura ou compreensão. Já o nível de leitura para o ensino seria aquele em que os textos teriam cerca de 10% de palavras difíceis, ou seja, no limite do nível de frustração.

 

DESENVOLVIMENTO DA FLUÊNCIA: ESTRATÉGIAS

Em decorrência desses critérios, textos para desenvolver fluência de leitura independente devem ser elaborados de maneira proposital, com escolha judiciosa de palavras e estruturas sintáticas, e obtêm mais efeito com leituras repetidas do mesmo texto. Já os textos para desenvolver compreensão devem ser escolhidos judiciosamente e lidos com ajuda do professor, para evitar que o aluno se desencoraje a ler livros mais desafiadores, por falta de fluência.

Com base nesses argumentos e em diagnósticos que evidenciam as dificuldades específicas dos diferentes leitores, diferentes autores propõem diferentes estratégias para desenvolver a fluência de leitura, e que incluem técnicas de leitura de morfemas, palavras com diferente nível de tamanho e dificuldade de pronúncia, rimas e trava-línguas. Esse tipo de texto é muito comum na tradição oral e popular dos vários países. Autores como Ricardo Azevedo ou Elias José fornecem inúmeros exemplos desses textos. Poemas de Cecília Meireles reunidos no livro Ou Isto ou Aquilo – além de seu alto valor literário – são desafios que ilustram a sensibilidade da poetisa a essas dificuldades dos alunos.

Textos graduados ou nivelados. Alguns estudiosos do tema sugerem a escolha cuidadosa de palavras dos textos – há livros que são propositadamente escritos a partir de um conjunto limitado de palavras – tipicamente palavras de maior frequência a que é exposto o leitor iniciante. Outros sugerem, além do cuidado com o vocabulário, o uso de estruturas sintáticas progressivamente mais complexas. Esses textos, de caráter paradidático, são conhecidos como textos graduados ou nivelados. Textos como o da Bonequinha Preta, de Alaíde Lisboa de Oliveira, escrito no início dos anos 30 do século passado, revela a atenção, esmero, intuição e o cuidado dos pioneiros da pedagogia brasileira com o vocabulário, a linguagem e a sintaxe empregada em textos infantis.

Em países de língua inglesa, esses livros “graduados” foram inspirados pelas obras seminais do Dr. Seuss, que incorporam todos esses quesitos com arte e maestria – e converteram-se em best-sellers permanentes. O quinteto Hop and Pop, Fox in Socks, The Cat in the Hat, Gren Eggs and Ham e One fish two fish red fish blue fish, publicados originalmente em 1957, ainda constituem uma antologia clássica no gênero. Esse trabalho inspirou uma série de propostas de livros “graduados” ou “nivelados” – que também são usados em outras línguas e países.

 

DESENVOLVIMENTO DE FLUÊNCIA DE LEITURA NO BRASIL 

O tema da fluência de leitura é pouco estudado e desenvolvido no Brasil. Pela sua estrutura léxica e sintática, a Coleção Mico Maneco, de Ana Maria Machado e ilustração de Claudius, seguramente se enquadra no conceito de livros “graduados”.

Nos últimos anos, o Instituto Alfa e Beto publicou algumas coleções de livros e de jogos digitais com esse propósito, e também possui escalas e testes de proficiência de fluência de leitura. O tema fluência de leitura passou a constar da proposta da Base Nacional Comum Curricular e é possível que venha a ser objeto de maior atenção.

 

REFERÊNCIAS

Allington, R.L. Fluency: the neglected reading goal. The Reading Teacher, 36, 556-561, 1983.

Armbruster, B.B., Lehr, F. & Osborn, J. (2001) Reading first: The research building blocks for teaching children to read. Kindertarten through gradd 3. Washington, D.C.: National Institute for Literacy.

Castro, São Luis (2015). Como saber se o aluno foi alfabetizado. In Morais, J. e Oliveira, J. (Orgs.) Alfabetização: em que consiste, como avaliar. Brasília: Instituto Alfa e Beto, Série Seminários Internacionais, 2015 p. 68.

Dowhower, S.L. (1991) Effects of repeated Reading on second-grade transitional readers fluency and comprehension. Reading Research Quarterly, 22, 380-406, 1991;

Hasbrouck, J.E. & Tindal, G. (1992)Curriculum-based Oral Reading Fluency Norms for Students in Grades 2-5. Teaching Exceptional Children, 24, Spring, pp. 41-44.

Kuhn, M.R. & Stahl, S.A. (2000) Fluency: A review of developmental and remedial practices. CIERA Report N. 2-008. An Arbor, MI: Center for the Improvemnt of Early Reading Achievement.

Johnson, M.S., Kress, R.A. & Pikulsky, J.J. (1987). Informal Reading Inventories. Newardk, DE: International Reading Association.

LaBerge, D. & Samuels, S.A. Toward a theory of automatic information processing in Reading. Cognitive Psychology, 6, 293, 323.

Morais, J. Criar leitores (2005). São Paulo: Manole, p. 138.

Morais, J. e Oliveira, J.B.A., (2015). Alfabetização: em que consiste, como avaliar. Brasilia: Coleção IAB de Seminários Internacionais.

NICHHD (2000). Report of the National Reading Panel:Teaching children to read: An evidence-based assessment of the scientific research literature on reading and its implications for reading instruction. Publicação 00-4769 NICHHD – National Institute of Child Health and Human Development. Washington, D.C. U.S. Government Printing Office.

Pennac, D. (1993) Como um romance. Porto Alegre: L&PM Editores.

Pikulskyi, J.J. (1990). Informal Reading Inventories. The Reading Teacher, 11, 514-516.

Rasinski, T.V. (2003). The fluent reader: Oral Reading strategies for building and recognition, fluency and compreenhension. New York: Scholastic.

Samuels, S.J. Reading fluency: its development and assessment (2002). In A.E. Farstrup & S.J. Samuels (Eds.). What research has to say about Reading instruction. NewarK DE: International Reading Association, 3a. Ed. pp. 166-183.

Schreiber, P.A. (1991) Understanding prosody’s role in reading acquisition. Theory into Practice, 30, 158-164.

Stanovich. K.E. (1991) Word recognition: Changing perspectives. In R. Barr, M.L. Kamil, P. Mosenthl & P.D. Pearson (Eds.). Handbook of Reading Research (vol 2, pp 418-452. New York, Longman.