QI e as silenciosas reformas sociais e educativas | Capítulo 19

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Este post faz parte de uma série produzida pelo Instituto Alfa e Beto que irá desvendar em 20 capítulos a inteligência. Todas as segundas-feiras são publicados novos artigos neste espaço. Acompanhe! Clique aqui e veja todos os posts já publicados. Para ver o índice completo da série, clique aqui.

Nesta série de posts, sintetizamos muito do que hoje sabemos sobre o desenvolvimento da inteligência e sua relação com o sucesso escolar e com outros aspectos da vida individual e social. De modo particular, sabemos que o QI é fortemente influenciado pela genética, mas também o é pelo ambiente. E essa influência é maior nas pessoas de classes sociais mais baixas e nos primeiros anos de vida – a chamada Primeira Infância.

No texto de hoje, vamos resumir algumas características e mudanças importantes ocorridas nas políticas sociais e em práticas educacionais dos países mais avançados, especialmente desde a segunda metade do século passado, associando-as ao tema desta série, ou seja, a formação do capital cognitivo.

  1. Redução da pobreza. A pobreza está associada à exposição das futuras mães e bebês a uma série de riscos que geram estresse e condições adversas na gravidez e durante o parto, que podem deixar consequências graves após o nascimento. E quase todas elas incidem sobre o desenvolvimento cognitivo das crianças. Portanto, sem sombra de dúvida, medidas para reduzir a pobreza ou atenuar seus efeitos podem ter resultados positivos significativos no desenvolvimento cognitivo dos indivíduos e, consequentemente, da sociedade. As maneiras de intervir são várias, bem como sua eficácia na redução, eliminação da pobreza ou integração das famílias na economia. O índice de Gini pode ser um indicador relevante de melhorias efetuadas nos vários países.
  2. Atendimento pré-natal. Grande parte do desenvolvimento cerebral ocorre dentro do útero. Por isso, a condição em que ocorre a gravidez e o nível de exposição da mãe a privações e riscos, especialmente desnutrição, drogas e infecções podem comprometer o desenvolvimento cognitivo. A eliminação ou redução da incidência de depressão pós-parto é um dos exemplos que ilustra a importância de atividades de preparação dos pais em competências de “parentalidade”. A redução da gravidez juvenil é outro.
  3. Atendimento peri- e pós-natal. No plano físico, o parto anterior a 25 semanas de gestação (prematuro) coloca riscos e sobrecarga sobre o recém-nascido, podendo afetar seu desenvolvimento cognitivo. Por outro lado, a ingestão de leite materno – e somente dele nos primeiros 6 meses de vida, no mínimo – introduz anticorpos inexistentes em alimentos formulados e ajuda a criança a manter alta resistência e evitar doenças infecciosas, que competem pelas elevadas necessidades de energia do cérebro em formação. Esses são dois exemplos de conhecimentos científicos que vêm ajudando a formular e implementar políticas públicas de grande alcance no desenvolvimento cognitivo da população.
  4. Desenvolvimento cerebral. Quando a criança nasce, a arquitetura do cérebro ainda está nos estágios iniciais de sua formação, e tanto a forma quanto o funcionamento dessa estrutura dependem em grande parte do que ocorre no ambiente próximo, seja em casa ou instituições de cuidado infantil. Estímulos adequados no momento adequado são fundamentais não apenas para a formação de vínculos de afeto e estabilização do temperamento, que gera atitudes mais ou menos favoráveis à exploração do mundo. É nos primeiros anos de vida, e especialmente nos meios socioeconômicos mais desfavoráveis, que este ambiente próximo bem estruturado pode causar diferenças marcantes no desenvolvimento cerebral e intelectual – daí a crescente busca de modelos adequados e eficazes de intervenção por parte de pais, cuidadores e instituições especializadas. Há algumas intervenções que comprovadamente provocam resultados de impacto duradouro.
  5. Creches. As evidências são abundantes: creches de excelente qualidade, continuadas com atenção educacional de muito boa qualidade nos anos subsequentes, podem fazer diferença significativa na vida das crianças – especialmente as de origem socioeconômica mais desfavorecida. A diferença será tão mais significativa quanto a qualidade das interações que ocorrem nas creches for superior ao que a criança receberia em casa, e também tanto maior quanto mais baixo for o nível socioeconômico das famílias. Nem toda creche faz bem às crianças carentes – e muitas podem fazer mal. A maioria dos países desenvolvidos não tem políticas de universalização de creches, tanto por uma questão de prioridade no uso de recursos como por opção que deixa a cargo dos pais a educação nesta fase inicial da vida.
  6. Pré-escolas. A pré-escola tornou-se componente integral da paisagem escolar, mas na maioria dos países é tratada separadamente do ambiente escolar, quase sempre junto com as creches, com metodologias próprias, currículos adequados ao desenvolvimento infantil e, crescentemente, com a missão de preparar as crianças para a transição para a escola. A preparação para a alfabetização constituiu um dos elementos marcantes dessas novas tendências. Especialmente nos Estados Unidos, há uma tendência, considerada negativa, de escolarização da pré-escola.
  7. Transição escolar. São fortes as evidências do impacto do professor do primeiro ano escolar sobre o desenvolvimento cognitivo dos alunos e a formação de bons hábitos de estudo26.
  8. Currículos e diversificação de trajetórias. Até a metade do século XX, a diversificação (tracking) começava mais cedo, a partir das séries finais do ensino fundamental. Hoje, em todos os países desenvolvidos, a diversificação se dá no ensino médio. Também há uma forte ênfase no domínio da língua e de disciplinas associadas com STEM (Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática). No âmbito do ensino médio acadêmico, há fortes diferenciações entre escolas e currículos, com o objetivo de maximizar o esforço e o talento dos alunos.
  9. Competição invisível entre escolas. De acordo com a OCDE27, mais de 70% dos diretores de escola nos países industrializados reconhecem que existe uma competição entre escolas, no sentido de que os alunos podem escolher entre diferentes escolas dentro de uma região geográfica ou uma cidade – o que as leva a buscar níveis de desempenho mais elevados.
  10. Meritocracia. Testes internacionais como o PIRLS, TIMMS e Pisa, e testes nacionais como a Prova Brasil são usados com frequência cada vez maior para calibrar os sistemas e ajustar os currículos dos diferentes países. Na maioria deles, sistemas de acesso ao ensino superior estão atrelados ao ensino médio, na forma de BACs, ABITURS ou outros tipos de exame, ou a testes preditivos do desempenho, como o SAT, ACT ou GRE, nos Estados Unidos. O nível de conclusão do ensino médio nos países desenvolvidos é próximo de 85%, mas isso não significa que os alunos foram preparados ou estão em nível adequado para ingressar no ensino superior. Nos Estados Unidos, por exemplo, de acordo com notas em Ciências, Matemática e Língua, apenas entre 19% e 64% dos alunos atingem níveis adequados para acessar universidades com nível de exigência médio ou superior28.
  11. Cotas. Nos países que adotam sistemas de cotas, o critério é sempre o de compensar deficiências intelectuais com pontos extras na nota que permitam acesso a cursos mais rigorosos do que o aluno teria condições de acessar. O impacto desses programas é difícil de medir e alvo de muita controvérsia. Nos Estados Unidos, por exemplo, o acesso de negros ao ensino superior subiu, mas a distribuição dos resultados do QI permaneceu relativamente constante. Isso sugere que uma política adequada de cotas serve sobretudo como um sistema de incentivo ao esforço. Se as cotas forem muito generosas, o incentivo poderia ter o efeito contrário29.
  12. Internacionalização. Nas últimas décadas é crescente a internacionalização e troca de estudantes, professores e cientistas entre os países desenvolvidos. Esta estratégia não apenas permite uma fertilização cruzada que ensina a aprender e conviver com outros povos, línguas e culturas, mas também reduz o risco de uma perda seletiva de talentos de um para outro país.
  13. As empresas e seus processos de seleção. Nas últimas décadas os processos seletivos das grandes empresas têm privilegiado dois critérios. Muitas empresas limitam seu recrutamento – inclusive de estagiários – a alunos provenientes de escolas de alto nível. Com isso, estão sinalizando que querem alunos que passaram por critérios rigorosos de seleção e conseguiram superar desafios cognitivos rigorosos. O outro critério, quase sempre complementar, é submeter o candidato a testes do tipo QI e testes que procuram medir habilidades socioemocionais – especialmente ligadas ao relacionamento pessoal e capacidade de colaborar em grupo.
  14. Investimentos em pesquisas. Na maioria dos países desenvolvidos, 50% ou mais dos recursos para pesquisas são gastos em empresas privadas ou em pesquisas associadas a seus desafios concretos, e não em universidades. Da mesma forma, a maioria das patentes são provenientes de empresas.

Em síntese: nesse post resumimos algumas estratégias e tendências usadas nos países mais desenvolvidos para estimular e gerenciar seus talentos.

Resta, para finalizarmos nossa série sobre QI, falar das habilidades socioemocionais, assunto para a próxima semana.


Referências bibliográficas:

26 Sobre a importância do professor do 1o ano sobre o sucesso escolar posterior do aluno ver Hamre, B.K. e Pianta, R. C. (2001). Early teacher-child relationships and the trajectory of children school outcomes through eight grade. Child Development, 72, 625-638.

27 Sobre material da OECD a respeito da competição, veja mais no livro Educação Baseada em Evidências.

28 Hyde et. Alia (2008) analisaram os resultados do teste ACT que serve como indicador de domínio dos conteúdos típicos dos currículos de ensino médio nos Estados Unidos (diferentemente do teste SAT, que mede competências cognitivas gerais fortemente associadas ao fator “g”. De acordo com esses autores, no Estado do Illinois, que se situa acima da média de desempenho naquele país, 64% dos meninos e 68 das meninas atingiram o nível adequado em linguagem; 44% e 37% em Matemática; e 30 e 19% em ciências, respectivamente.  As diferenças nesses testes são pequenas, mas sempre menores do que as diferenças encontradas nos testes do SAT – que incluem uma proporção maior de mulheres:
Hyde, J.S., Lindberg, s.M., Lilnn, M.c., Ellis, A.B. & Willians, C.C. (2008, Julho 25). Gender similarities characterize math performance. Science, 321, 494-495.

29 No Brasil, as cotas para alunos de ensino médio que frequentam escolas públicas podem atrair para escolas públicas alunos de nível socioeconômico e QI mais elevado. Dependendo das regras, esses alunos poderão ter acesso a melhores universidades empregando menos esforço Sistemas de cotas devem ser revistos e monitorados por meio de avaliações rigorosas, para evitar efeitos indesejados.