Uma BNCC a cara do Brasil e muito diferente daquelas de países desenvolvidos

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O que faz um bom professor?

Por Ilona Becskehazy

Duas notícias na semana passada mostram questões da política educacional absolutamente complementares: Sobral novamente no topo do IOEB e finalização turbulenta da BNCC.

A finalização da aprovação da BNCC está povoada de polêmicas. A razão para isso é que o processo foi conduzido à moda da jabuticaba. Ao invés de ser precedido por um profundo levantamento bibliográfico que mostrasse quais as práticas curriculares de países desenvolvidos (aqueles de renda alta, industrializados e democráticos, que uma parte considerável da população brasileira quer ser um dia*), seguido pela apresentação dos objetivos curriculares (sim, M-E-T-A-S de aprendizagem, ou seja, onde a sociedade crê que TODOS, minimamente, devem chegar a cada etapa escolar) para as disciplinas âncora (sim, as mais importantes: Língua Portuguesa e Matemática, sem as quais não se compreende as demais) para só então partir para apresentar um documento para consulta pública, o Brasil optou por um caminho próprio, desconectado com o mundo desenvolvido e, obviamente, errado. Enquanto as autoridades educacionais de países realmente preocupados com a evolução da educação que oferece à sua população conduzem, quando o fazem, consultas pública responsáveis, em cima de aspectos bem específicos do documento, nós jogamos para a galera e pedimos para quem justamente não recebeu formação suficiente para educar seus alunos dizer como terá que ser feito quando se resolver acordar para o problema.

* Todos os países desenvolvidos cumprem esta etapa. Uns copiam dos outros e ninguém tem vergonha de declarar isso, pelo contrário, a validação política vem justamente de mostrar que o governo está fazendo um esforço de aproximar as expectativas locais daquelas de países com melhor desempenho no Pisa.

O processo de construção da BNCC é a cara do Brasil: zero compromisso com a cultura acadêmica, com a excelência educacional – principalmente a pública – e um desejo bem forte de manter os pobres “no seu lugar”. Imagine se é possível no Brasil uma concertação para que todas as pessoas de 4 a 17 anos, independente de sua origem social, aprendam aproximadamente a mesma coisa. . . o Brasil deixava de ser o Brasil!

Nasce, então, o protótipo de um documento que deveria regular todo o funcionamento do setor educacional brasileiro. Da formação docente às editoras, do funcionamento das escolas à seleção de professores. É óbvio que um documento realmente sério seria incômodo demais para nossa sociedade conservadora, hierárquica e direcionada para benefícios de curto prazo.

Vamos recordar que o início do processo de construção da BNCC foi conduzido pelo Ministério da Educação de um governo populista, com ampla base de apoio dos sindicatos e dos intelectuais orgânicos da academia educacional, que não têm o menor compromisso com a educação em si, mas sim com a derrubada do capitalismo e outras conquistas que imaginam ser mais vantajosas. Para eles, determinar que todos os brasileiros, em particular os mais pobres, possam aprender o suficiente para pensar por si mesmos é uma possibilidade perturbadora. Não há fórmula melhor para melar o processo de cara que construí-lo supostamente “de baixo para cima” em um contexto no qual não só não se conhecem as referências internacionais de qualidade (incluindo Cuba –  :o), mas onde também não se lê em inglês, para poder passar a estudar a produção intelectual sobre o tema no mundo.

Por outro lado, o lado empresarial da sociedade, que não pode deixar de manter relações amigáveis com o governo que estiver no poder, formou um grupo de turismo e eventos educacionais para não incomodar ninguém. Obviamente, não foi capaz de produzir sequer um contraponto de peso às barbaridades que foram sendo construídas nas diferentes versões da tal “base”, nome eufemístico adequado a um país que não consegue se comprometer com a educação de excelência, muito menos para os mais pobres. Temos agora a frágil BNCC, apontando para a direção certa de uma educação  escolar com patamares mais ambiciosos de aprendizado, mas muito mal escrita e sem progressão clara dos objetivos pedagógicos. Em um país que não conta nem com tradição nem com conhecimentos mínimos sobre como fazer planejamento pedagógico, seria fundamental que um documento inovador fosse mais robusto, como o de Sobral. Mas, como estamos no Brasil, melhor ficar com um pássaro na mão, que é a versão 3 da BNCC, do que não ter sequer um parâmetro novo para impulsionar mudanças nas avaliações padronizadas nacionais, que vão ser, com sorte, mas, infelizmente, o único motor possível de indução de melhorias nas expectativas de aprendizagem para os alunos brasileiros.

Vou me ater a apresentar dados para a análise do leitor apenas para dois pontos correlatos: a concepção dos objetivos pedagógicos para educação infantil e o processo de alfabetização que ocorre AINDA nesta etapa em países onde a educação é realmente levada a sério. Para facilitar o entendimento do leitor vou me concentrar em apresentar detalhes de apenas dois países, Reino Unido e França, mas coloco aqui também o link para outras referência que usamos na construção do novo currículo de Sobral.

Portugal, ensino pré-escolar e  básico:

http://www.dge.mec.pt/ocepe/node/46

http://www.dge.mec.pt/sites/default/files/Basico/Metas/Portugues/pmcpeb_julho_2015.pdf

Estados Unidos, Kindergarten:

http://www.corestandards.org/ELA-Literacy/RL/K/

Ontário, educação infantil e primária:

https://www.ontario.ca/document/kindergarten-program-2016?_ga=2.110672647.385251240.1512994170-815847004.1511854163

http://www.edu.gov.on.ca/eng/curriculum/elementary/grades.html

França – escola maternal – vou deixar no original para que cada um dê a interpretação que quiser. O Google Translator dá conta de ajudar quem não domina o(s) idioma(s). O que quero mostrar é que, na França, de onde parecem partir algumas das inspirações de quem ataca a BNCC, não se tem dúvida quanto a garantir que os alunos aprendam, desde a escola maternal, a se expressar com consciência sobre as regras da língua, a consciência fonética, o princípio alfabético e a decodificação*!!! Desde os 4 anos!!!. Os grifos são meus.

* Este palavrão mitológico é regra nos países desenvolvidos. Aqui é visto como um pecado original da educação: vejam este trecho que está abaixo “il faut que les enfants se détachent du sens des mots”. Isso quer dizer “é necessário que as crianças se distanciem do sentido das palavras”. Entendido?? A descrição completa da decodificação está na segunda citação.

O link é este aqui.

1. Mobiliser le langage dans toutes ses dimensions
Le mot « langage » désigne un ensemble d’activités mises en œuvre par un individu lorsqu’il parle, écoute, réfléchit, essaie de comprendre et, progressivement, lit et écrit. L’école maternelle permet à tous les enfants de mettre en œuvre ces activités en mobilisant simultanément les deux composantes du langage :
‐ le langage oral : utilisé dans les interactions, en production et en réception, il permet aux enfants de communiquer, de comprendre, d’apprendre et de réfléchir. C’est le moyen de découvrir les caractéristiques de la langue française et d’écouter d’autres langues parlées.
‐ le langage écrit : présenté aux enfants progressivement jusqu’à ce qu’ils commencent à l’utiliser, il les habitue à une forme de communication dont ils découvriront les spécificités et le rôle pour garder trace, réfléchir, anticiper, s’adresser à un destinataire absent. Il prépare les enfants à l’apprentissage de l’écrire-lire au cycle 2.

[…]

Commencer à réfléchir sur la langue et acquérir une conscience phonologique
Dès leur plus jeune âge, les enfants sont intéressés par la langue ou les langues qu’ils entendent. Ils font spontanément et sans en avoir conscience des tentatives pour en reproduire les sons, les formes et les structures afin d’entrer en communication avec leur entourage. C’est à partir de trois-quatre ans qu’ils peuvent prendre du recul et avoir conscience des efforts à faire pour maîtriser une langue et accomplir ces efforts intentionnellement.On peut alors centrer leur attention sur le vocabulaire, sur la syntaxe et sur les unités sonores de la langue française dont la reconnaissance sera indispensable pour apprendre à maîtriser le fonctionnement de l’écriture du français.
L’acquisition et le développement de la conscience phonologique
Pour pouvoir lire et écrire, les enfants devront réaliser deux grandes acquisitions : identifier les unités sonores que l’on emploie lorsqu’on parle français (conscience phonologique) et comprendre que l’écriture du français est un code au moyen duquel on transcrit des sons (principe alphabétique).
Lorsqu’ils apprennent à parler, les enfants reproduisent les mots qu’ils ont entendus et donc les sons de la langue qu’on leur parle. S’il leur arrive de jouer avec les sons, cela se fait de manière aléatoire. À l’école maternelle, ils apprennent à manipuler volontairement les sons, à les identifier à l’oreille donc à les dissocier d’autres sons, à repérer des ressemblances et des différences. Pour pouvoir s’intéresser aux syllabes et aux phonèmes, il faut que les enfants se détachent du sens des mots.
L’unité la plus aisément perceptible est la syllabe. Une fois que les enfants sont capables d’identifier des syllabes communes à plusieurs mots, de les isoler, ils peuvent alors s’attacher à repérer des éléments plus petits qui entrent dans la composition des syllabes. Parce que les sons-voyelles sont plus aisés à percevoir que les sons-consonnes et qu’ils constituent parfois des syllabes, c’est par eux qu’il convient de commencer sans vouloir faire identifier tous ceux qui existent en français et sans exclure de faire percevoir quelques sons-consonnes parmi les plus accessibles.
Pour développer la conscience phonologique, l’enseignant habitue les enfants à décomposer volontairement ce qu’ils entendent en syllabes orales : en utilisant le frappé d’une suite sonore, en « découpant » oralement des mots connus en syllabes, en repérant une syllabe identique dans des mots à deux syllabes, puis en intervertissant des syllabes, toujours sans support matériel, ni écrit ni imagé. Ces jeux phoniques peuvent être pratiqués en grand groupe, mais l’enseignant privilégie l’organisation en petits groupes pour des enfants qui participent peu ou avec difficulté en grand groupe. Dans le courant de la grande section, il consacre des séances courtes de manière régulière à ces jeux, en particulier avec les enfants pour lesquels il ne repère pas d’évolution dans les essais d’écriture. Pour ceux qui en sont capables, des activités similaires peuvent être amorcées sur des sons-voyelles – notamment ceux qui constituent une syllabe dans les mots fréquentés – et quelques sons-consonnes. Ces jeux et activités structurées sur les constituants sonores de la langue n’occupent qu’une part des activités langagières.

E agora, o processo de alfabetização no Reino Unido, que se dá desde a educação infantil também.

Foundation Stage – objetivos para alfabetização e escrita na Reception (4-5 anos):

Literacy
Reading: children read and understand simple sentences. They use phonic knowledge to decode regular words and read them aloud accurately. They also read some common irregular words. They demonstrate understanding when talking with others about what they have read.
Writing: children use their phonic knowledge to write words in ways which match their spoken sounds. They also write some irregular common words. They write simple sentences which can be read by themselves and others. Some words are spelt correctly and others are phonetically plausible.

Este trecho a seguir pode ser encontrado no link:

During year 1, teachers should build on work from the Early Years Foundation Stage,
making sure that pupils can sound and blend unfamiliar printed words quickly and
accurately using the phonic knowledge and skills that they have already learnt. Teachers should also ensure that pupils continue to learn new grapheme-phoneme correspondences (GPCs) and revise and consolidate those learnt earlier. The understanding that the letter(s) on the page represent the sounds in spoken words should underpin pupils’ reading and spelling of all words. This includes common words containing unusual GPCs. The term ‘common exception words’ is used throughout the programmes of study for such words.
Alongside this knowledge of GPCs, pupils need to develop the skill of blending the sounds into words for reading and establish the habit of applying this skill whenever they encounter new words. This will be supported by practice in reading books consistent with their developing phonic knowledge and skill and their knowledge of common exception words. At the same time they will need to hear, share and discuss a wide range of high quality books to develop a love of reading and broaden their vocabulary.
Pupils should be helped to read words without overt sounding and blending after a few encounters. Those who are slow to develop this skill should have extra practice.
Pupils’ writing during year 1 will generally develop at a slower pace than their reading. This is because they need to encode the sounds they hear in words (spelling skills), develop the physical skill needed for handwriting, and learn how to organise their ideas in writing.
Pupils entering year 1 who have not yet met the early learning goals for literacy should continue to follow their school’s curriculum for the Early Years Foundation Stage to develop their word reading, spelling and language skills. However, these pupils should follow the year 1 programme of study in terms of the books they listen to and discuss, so that they develop their vocabulary and understanding of grammar, as well as their knowledge more generally across the curriculum. If they are still struggling to decode and spell, they need to be taught to do this urgently through a rigorous and systematic phonics programme so that they catch up rapidly.
Teachers should ensure that their teaching develops pupils’ oral vocabulary as well as their ability to understand and use a variety of grammatical structures, giving particular support to pupils whose oral language skills are insufficiently developed.

Usamos essas referências para elaborar o currículo de Sobral. Na hora de estabelecermos o processo de alfabetização, ficou claro que ele começa de forma consciente ainda na educação infantil, utilizando o método fônico. Este é um dos segredos do sucesso de Sobral, razão pela qual o Município está no topo de todas os levantamentos que levam em conta o aprendizado dos alunos. O Estado do Ceará, que vem adotando as mesmas práticas, segue o mesmo rumo. Quem quiser alcançar os mesmos resultados, precisa começar pelo mesmo lugar…

 

Para conferir o texto de Ilona Becskeházy na íntegra, clique aqui.