Educação e Federalismo no Brasil | Por Mariza Abreu

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Este artigo faz parte de uma série que debate em dez capítulos questões fundamentais para o avanço da educação no Brasil. As publicações acontecem em comemoração aos 10 anos de atuação do Instituto Alfa e Beto. Leia AQUI a série completa de artigos. 

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Federação desde a proclamação da República em 1889, o Brasil é um dos 28 Estados Federados entre os pouco mais de 190 países participantes da ONU. Numa Federação, governos nacional e subnacionais, todos eleitos, gozam de autonomia e, portanto, as relações de poder entre eles devem ser de negociação.

No Brasil, a Constituição Federal (CF) de 1988 institucionalizou os Municípios como entes federativos, ao lado dos Estados e do Distrito Federal (DF), e dispôs que o federalismo brasileiro deve ser cooperativo. Entretanto, a implementação dessa cooperação enfrenta problemas como a concentração tributária na União, com a consequente dependência financeira dos governos subnacionais; a falta de coordenação federativa, por um lado, pela indefinição do papel dos Estados e relação direta da União com os Municípios e, por outro lado, pela não representação institucional dos Municípios no Congresso Nacional, que decide a repartição do bolo tributário e das competências federativas; e a ausência de espaços deliberativos entre os executivos dos entes federados, para implementação de políticas de cooperação.

Na educação, a CF e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) dispõem sobre a repartição de competências entre os entes federados para oferta da educação escolar na forma de áreas de atuação prioritária, não de responsabilidade exclusiva, sendo o ensino fundamental (EF) competência comum de Estados e Municípios, e sobre a organização dos sistemas de ensino federal, estaduais/distrital e municipais em regime de colaboração, expressão exclusiva da educação.

Além de organizar o sistema federal e financiar as instituições federais de ensino, a legislação vigente determina à União o exercício da coordenação da educação nacional, por meio da função supletiva e redistributiva, com assistência técnica e financeira à educação básica, por exemplo, via complementação ao Fundef/Fundeb, programas do FNDE, Bolsa Escola/Bolsa Família; função normativa, por meio de normas gerais para a educação nacional, ou seja, de leis e decretos federais e atos normativos do Conselho Nacional de Educação; e função de planejamento e avaliação, por meio do sistema nacional de informações e de avaliação educacional e dos planos de educação, por exemplo, Censo Escolar, Saeb, Prova Brasil, ENEM, PNE.

Entre problemas do federalismo brasileiro na área educacional, destacam-se, em primeiro lugar, os conflitos permanentes entre Estados e Municípios. Eles competem entre si por recursos, por exemplo, pela disputa das matrículas do ensino fundamental, que são repartidas entre as redes estaduais e municipais de diferentes maneiras e proporções. Por exemplo, no Paraná 97,9% das matrículas nos anos iniciais do EF são municipais e 99,9% das matrículas nos anos finais são estaduais. No outro extremo, no Ceará 95% das matrículas em todo o EF são municipais.

A partir de 2007, com o Fundeb, Estados e Municípios contrapõem-se na fixação das ponderações do valor anual por aluno em cada nível e modalidade da educação básica, que regulam a redistribuição do montante do respectivo Fundeb estadual para cada Município e o governo do Estado.

Em várias Unidades Federadas (UF), governos estaduais e municipais divergem sobre o financiamento do transporte escolar dos alunos das redes estaduais de ensino, executado pelas Prefeituras, que reivindicam o repasse de recursos equivalentes aos custos por parte dos respectivos governos dos Estados. Convênios e leis estaduais têm encaminhado, mas não resolvido esse conflito.

Conflito semelhante sobre a distribuição dos recursos do salário-educação, antes transferidos aos Estados para repasse às Prefeituras, somente foi resolvido com a transferência direta pela União aos Municípios dos valores relativos à cota municipal dessa contribuição social.

Após 1988, com a possibilidade de os Municípios organizarem sistemas municipais de ensino, de forma autônoma e paralela ao pré-existente sistema estadual, todos subordinados às normas gerais da educação nacional, podem-se encontrar escolas estaduais e municipais na mesma municipalidade com organizações pedagógicas diversas entre si.

Em segundo lugar, é insuficiente o exercício da função supletiva e redistributiva da União na educação. Apesar do aumento de recursos para a complementação ao Fundeb, em relação ao que fora no Fundef, e da extensão dos programas suplementares da alimentação e transporte escolar para toda a educação básica a partir de 2009, antes somente para o EF, a União ainda participa com proporção insuficiente no financiamento da educação básica e, em consequência, persistem desigualdades regionais inaceitáveis.

Por fim, em terceiro lugar, decorrente da concentração tributária, há também concentração de poder decisório na União, em detrimento da autonomia dos entes federados. Por meio de transferências voluntárias, o planejamento e a formulação das políticas encontram-se cada vez mais sob responsabilidade do governo federal que transfere sua execução a Estados/DF e Municípios. Apesar de avanços como a Comissão Intergovernamental de Financiamento para a Educação Básica de Qualidade, instituída pela Lei do Fundeb em 2007, e o Grupo de Trabalho Permanente do Transporte Escolar (GTP-TE), criado por portaria em 2009, são ainda insuficientes os espaços deliberativos no âmbito federal, para assegurar o regime de colaboração. E a União costuma dirigir-se aos Municípios, sem o conhecimento dos respectivos governos estaduais, ou mesmo às escolas públicas, sem a participação de Estados e Municípios.

Diferentes propostas têm se apresentado para aperfeiçoar o federalismo na educação brasileira. Entre elas, a federalização da educação básica e a organização do Sistema Nacional de Educação (SNE), previsto no art. 214 da CF, com a redação dada pela Emenda Constitucional (EC) 59/2009, e na Lei 13.005/2014, que aprovou o Plano Nacional de Educação (PNE) para o decênio 2014-2024, que contém estratégia com o prazo de dois anos para dispor sobre o SNE, por lei complementar.

O Projeto de Lei do Senado (PLS) 320/2008 propõe a federalização como solução para as desigualdades sociais e regionais na educação básica brasileira. Aprovado no Senado Federal (SF), tramita na Câmara dos Deputados (CD) como Projeto de Lei (PL) 2286/2015, onde já recebeu parecer favorável do relator, ainda não apreciado na Comissão de Educação (CE). Essa proposição autoriza o governo federal a criar o Programa Federal de Educação Integral de Qualidade para Todos (PFE) e da Carreira Nacional do Magistério da Educação de Base (CNM), nas escolas públicas da educação básica do Estados/DF e Municípios. O PLS prevê implantação progressiva do PFE e a administração descentralizada das escolas participantes, sob a coordenação dos prefeitos e governadores. Esse programa não transformaria os entes federativos subnacionais em gerentes executores das políticas do governo federal, em desrespeito à sua autonomia?!

Ao mesmo tempo, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei Complementar (PLP) 413/2014, com Substitutivo apresentado na CE, ainda não votado, que regulamenta as normas de cooperação previstas na CF (art. 23, par. único) e institui o SNE.  Sem aprofundar a análise do PLP, cabe chamar atenção para o risco de o SNE vir a desconfigurar, em lugar de fazer avançar, o regime de colaboração entre a União, Estados/DF e Municípios na educação brasileira por um processo de re-centralização das políticas educacionais no país.

Para aperfeiçoar o federalismo na educação brasileira, a legislação do SNE precisará, em primeiro lugar, definir com mais clareza as competências de cada nível de governo, a fim de reduzir ou eliminar os conflitos entre Estados e Municípios. Por exemplo, com melhor definição das responsabilidades pelo EF e pelo transporte escolar.

Em segundo lugar, a Lei do SNE deverá assegurar maior participação da União no financiamento da educação básica, no cumprimento de sua função supletiva e redistributiva, de forma a completar a universalização do atendimento educacional às crianças e jovens de 4 a 17 anos e reduzir progressivamente as desigualdades regionais. Por exemplo, com maior complementação da União ao Fundeb, ou o fundo que vier a lhe suceder a partir de 2021, mais recursos para as transferências legais (como programas da alimentação e transporte escolar) e valores diferenciados dessas transferências por grupos de Municípios de acordo com indicadores só-econômicos e educacionais a serem definidos para cada uma delas.

Em terceiro lugar, o SNE deverá institucionalizar espaços interfederativos deliberativos em âmbito nacional e estadual. Por exemplo, não se justifica que o Conselho Deliberativo do FNDE tome as decisões sobre a aplicação da cota federal do salário-educação, assim como de outros recursos destinados à educação básica, sem representação dos Estados/DF e Municípios.

Por fim, é preciso garantir que a necessária participação de representações da sociedade em órgãos colegiados de fiscalização e controle social, como os conselhos do Fundef/Fundeb e da merenda escolar, e/ou de formulação das políticas públicas setoriais, com os conselhos de educação, não continue a implicar partidarização ou sindicalização das políticas públicas, pela ocupação dos espaços por parcelas mais “mobilizadas” da sociedade e grande influência de grupos organizados, notadamente sindicatos de professores e partidos políticos. O desafio é articular os interesses gerais da população com interesses particularizados de segmentos da sociedade, e os interesses legítimos dos professores por valorização profissional com a necessidade intransferível de aprendizagem dos alunos da escola pública brasileira.

 

*Mariza Abreu é representante da Confederação Nacional dos Municípios, tendo atuado como secretária de Educação e consultora legislativa no Congresso Nacional.

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