O controle social da educação: responsabilizar ou estimular os gestores?

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Gestão educacional

Nota do Instituto Alfa e Beto:
Este artigo foi publicado originalmente no site Congresso o Foco

Este artigo foi motivado pela participação do autor na audiência pública promovida pela Comissão de Educação da Câmara, nesta quarta-feira (2), para debater o parecer sobre o Projeto de Lei nº 7.420, de 2006, mais conhecido como Lei da Responsabilidade Educacional.  A intenção do legislador é promover o controle social da educação para assegurar a qualidade.  O referido projeto de lei propõe como instrumentos a definição de insumos mínimos, recursos para assegurar os insumos, metas de desempenho baseadas no Ideb e penalidades para o Executivo estadual ou municipal que não cumprir as metas.

Focamos o debate em dois aspectos da proposta. De um lado, analisamos a inadequação dos mecanismos propostos e a ideia de penalizar prefeitos e governadores como estratégia para melhorar a qualidade. De outro, apresentamos alternativas que nos parecem mais eficazes para promover a qualidade com equidade.

Existem vários mecanismos para assegurar qualidade na educação. Tradicionalmente o Brasil prefere mecanismos a priori, como leis e regulamentação. Fieis às Ordenações Manuelinas, insistimos nessa tradição – inclusive estendendo-as ao que deveriam ser modernas agências regulatórias.  O resultado está aí, “tudo legal, e tudo muito ruim”, como dizia Anísio Teixeira já nos anos 50. Passaram-se 515 anos e continuamos incapazes de aprender que não se muda nem a sociedade nem a educação por meio de leis, decretos, portarias e programas.

Como somos desastrados! Durante quase dois séculos tivemos um único modelo de escola que pegou, a “escola primária”, com 4 séries.  Esse modelo se refletia inclusive numa arquitetura funcional – basta ver os prédios ainda remanescentes dessa época.  Mas nunca fomos além, nunca tivemos um modelo estável para o resto do sistema escolar. Tínhamos o ginásio de cinco anos, depois de quatro, depois o admissão, depois o ginásio sem admissão, depois o ensino fundamental de 8 anos, que de sem qualquer planejamento adequado passou para 9 anos. Não há parâmetro que aguente! Et plus ça change, et plus c’est la même chose– como dizem os franceses: quanto mais muda, mais permanece igual.  Regular o quê?  Agora queremos regular o tamanho das escolas e número de suas dependências num país que sequer possui um modelo de atendimento educacional ou uma regra clara sobre municipalização.

A ideia de um CAQ – Custo aluno qualidade – de estabelecer insumos mínimos tem algum mérito – definir insumos e serviços deve ser parte integrante de instituições educacionais ou mecanismos regulatórios.  Uma escola deve ter salas, biblioteca, banheiro, espaço mínimo por usuário, etc.  Mas é preciso equilíbrio no nível de detalhe.  De modo particular, é necessário não congelar o modelo de escola dos séculos passados, tendo em vista fatores como as mudanças demográficas, a consolidação da urbanização, a coexistência de duas redes de ensino e o potencial de impacto das novas tecnologias.  Há os que ainda pensam em “sala de informática”, e os que já pensam na escola sem paredes.

A aplicação da ideia é muito mais complexa.  Escolas podem servir a alunos em um, dois ou três turnos, portanto os custos mudam. Diferentes regras sobre agrupamento e alocação de professores podem alterar profundamente a equação de custos.

Mais complexo ainda é estabelecer custos relacionados aos insumos mínimos. Por exemplo, atualmente o Brasil dispõe de dois professores contratados para cada turma de alunos – o que representa um enorme desperdício de recursos. Isso decorre em parte das regras relacionadas com o tempo dos professores em sala de aula e os contratos de trabalho, que aumentam as ineficiências, especialmente nas séries finais e ensino médio. Quanto menor a escola, maior a ineficiência.

Em síntese: mecanismos como o CAQ têm pouca chance de contribuir para assegurar qualidade ou equidade. E com certeza contribuem para aumentar custos e tornar os orçamentos mais rígidos.

Outro equívoco é usar o Ideb como indicador. O Ideb é um índice precário, composto por uma combinação de notas na Prova Brasil e fluxo escolar. Um município pode obter um avanço no Ideb sem melhorar a qualidade.  Ademais, as metas de avanço estabelecidas para o Ideb são baseadas num desejo – não há nada que comprove ou sustente a sua viabilidade.  Por que submeter os estados e municípios a um critério tão arbitrário, que, de resto, já se sabe que não será atingido?

Em síntese: os instrumentos propostos na lei são inadequados, desnecessários, inócuos ou todos acima. O único efeito claro será aumentar os gastos públicos e engessar os orçamentos. Punir prefeitos e governadores que já concluíram seus mandatos pouco ajudará a educação – se a população não distingue um bom prefeito ou governador depois de quatro anos de mandato não será uma oscilação casual no IDEB que irá sinalizar que ele foi um mau gestor ou contribuiu para melhorar a educação.  E resta a pergunta: se é para punir, por que não incluir também o governo federal?

Cabe aprofundar brevemente a discussão sobre os gastos. O Brasil gasta cerca de 6% do PIB em educação – somente considerando os gastos públicos. Eles representam quase 20% dos gastos públicos. Para um PIB de R$ 5,5 trilhões em 2014 isso significaria cerca de R$ 550 bilhões. Um simples exercício nos ajuda a entender que o problema do Brasil não é de falta de recursos, mas de seu mau uso.

Atualmente o valor mínimo do Fundeb é de aproximadamente R$ 2.500, e abrange um contingente de 50 dos 57 milhões de alunos do ensino fundamental. Estimando o gasto médio em R$ 4.500 por aluno nas redes públicas, teríamos um valor aproximado de R$ 225 bilhões, o que representa 5% do PIB.  Dentro de 25 anos o Brasil terá cerca de 30 milhões de pessoas até 17 anos.  A demanda pelo ensino público será de no máximo 22 milhões. A custos de hoje, teríamos mais de R$ 10 mil/aluno, o que nos colocaria perto da média dos países da OCDE. Ou seja, com um aumento de eficiência, no presente, e um planejamento adequado, para o futuro, não seria necessário aumentar os recursos para a educação para dobrar o valor per capita.

Se admitirmos que, ao invés de cuidar de 2/3 de uma turma, cada professor pudesse cuidar de uma turma inteira, teríamos 1/3 de professores a menos e salários a mais. Ou seja, com boa gestão é possível chegarmos a um patamar próximo à média da OCDE sem precisar de fazer cálculos mirabolantes ou aumentar a proporção do PIB destinada à educação.  Por outro lado, aumentar os recursos sem alterar as regras atuais de gasto criará embaraços insustentáveis – inclusive e particularmente face às demandas dos grupos demográficos de idosos.

Resta procurar outros caminhos para promover o controle social da educação.  É inegável que falta pressão por qualidade da educação no Brasil. Temos a escolha entre escolas públicas e privadas, um privilégio de quem pode pagar e que, de certa forma, promove a qualidade aumentando a inequidade.  Dentro do sistema público temos algumas válvulas de escape: quando há opções dentro do município, os pais procuram as melhores escolas públicas para os seus filhos – como atestam as filas nas portas de certas escolas ou os sutis mecanismos de atração dos melhores alunos pelas melhores escolas – como é o caso dos colégios técnicos, colégios de aplicação e mesmo de escolas públicas melhorzinhas, como já documentado no município do Rio de Janeiro.

Ou seja: quando há meios – dinheiro ou regras de acesso –, os pais procuram uma escola de melhor qualidade para seus filhos. Ainda que a qualidade não seja lá grandes coisas.

Por outro lado, a maioria dos pais de alunos das escolas públicas, mas também nas privadas, está satisfeita com as escolas, em parte por boas razões: seus filhos tiveram mais chances do que eles, há vagas sobrando, as escolas existem, os alunos ficam mais tempo, sua perspectiva de vida é melhor. O ensino superior escancarou suas portas e o vestibular só é preocupação dos poucos que se dispõem a subir no pau de sebo que leva o vencedor a entrar nos melhores cursos das melhores faculdades gratuitas.

Regulamentar e expandir a educação da forma afoita, como fazemos desde os anos 60, não melhorou a qualidade.  Criar miríades de conselhos e órgãos consultivos dentro e fora da escola também não. A divulgação dos resultados do Pisa e da Prova Brasil – que faz cair ministros em outros países onde a educação é muito melhor do que a nossa – nos leva a comemorações desautorizadas pelos fatos: os órgãos do governo responsáveis pela avaliação não ajudam, ao contrário, procuram tapar o sol com a peneira.

A questão é: como criar pressão para que os governantes ofereçam educação de qualidade?  Como fazer isso num país em que as decisões concentram-se em Brasília e a execução é fracionada entre os governos estaduais e municipais?  Em que um diretor de escola pública não dispõe de autonomia e meios para fazer a escola funcionar?  Onde a parcela da população mais consciente e escolarizada tem a prerrogativa de colocar seus filhos nas escolas particulares? Onde os que fazem leis e as implementam não frequentaram nem mandam seus filhos para as escolas públicas?

Se não sabemos com clareza como fazer, sabemos com certeza como não fazer: não será por meio de leis e decretos que vamos melhorar a educação.  A história e a experiência de outros países podem ajudar: a educação funciona como parte dos instrumentos de cidadania que asseguram o êxito dessas formas de controle social. Nos países em que a educação funciona para todos, existe uma cultura da educação, da escola, da boa aula, do bom professor.  Educação se faz com instituições – sistemas de crenças e valores sobre itens críticos tais como o que é a escola, para que serve; o que é um bom professor, como deve ser recrutado e formado; o que é um currículo, como deve ser instituído e implementado; o que se deve avaliar e fazer com os resultados da avaliação.  Parâmetros se estabelecem a partir de valores compartilhados e não simplesmente decretados – e normalmente são definidos por instituições profissionais ou sistemas de certificação – não pela via da lei ou dos regulamentos rígidos que só servem para criar dificuldades para vender facilidades.  Desses quatro vetores da cultura da educação o Brasil só tem um pouco de tradição na área de avaliação – e isso a menos de 20 anos. O resto era vidro e se quebrou – ou se esfacelou na onda de interesses corporativos e ideológicos que se apoderou de nossa sociedade pós-moderna.

Outra forma conhecida de mudar as organizações é pela via dos incentivos. Políticas de incentivos dependem de sistemas de informação transparentes, critérios claros e mecanismos para atualizar esses critérios, essenciais para que os incentivos não se transformem em direitos adquiridos. A literatura internacional está cheia de bons exemplos de incentivos: para pais escolherem as escolas; para escolas aceitarem alunos com certo perfil; para atrair e manter os melhores professores; para premiar as escolas ou redes de ensino que atinjam os determinados padrões; para atrair e manter jovens brilhantes no magistério. Aqui o legislador poderá encontrar um vasto espaço para legislar, no nível federal, estadual e municipal.

No Brasil existem alguns poucos casos de sucesso.  O estado de Minas Gerais, na década de 90, e o Ceará, mais recentemente, promoveram mecanismos interessantes para incentivar as redes municipais, e há alguma evidência de êxito.  Um aspecto interessante foi a redistribuição de recursos do ICMS (chamada de Lei Robin Hood); outro foi a distribuição de incentivos com base no desempenho do conjunto das escolas de um município, e não apenas em escolas individuais. Esses exemplos ilustram que é possível promover qualidade com equidade, e que há formas muito melhores, eficazes e rápidas para isso do que editando leis.