As ameaças digitais às crianças devem ser objeto de uma legislação específica?

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As ameaças digitais às crianças devem ser objeto de uma legislação específica?

As recentes revelações sobre como as grandes empresas usam e manipulam dados via internet impõem uma pergunta: cabe legislação específica para proteger as crianças, especialmente as mais novas, das ameaças digitais?

A China tomou medidas para limitar o acesso da população escolar a jogos digitais, inclusive controlando a duração diária de uso. A Inglaterra possui legislação razoavelmente avançada para proteger as crianças de uma grande variedade de intrusos digitais. Seria prudente legislar sobre o tema? Seria interferência absurda na autoridade das famílias? Ou na vida das empresas?

Vale pelo menos explorar o tema, tanto do ponto de vista da legitimidade quanto da eficácia potencial de tais medidas. A legitimidade tem a ver com o controle do cidadão e o poder das famílias. O que se propõe é controlar o acesso das crianças a conteúdos indevidos, apesar da atitude displicente ou conivente dos pais. De novo: a China tem regras até para punir pais pelo mau comportamento dos filhos. Há riscos em aumentar demasiadamente o poder do estado. Mas, e se os pais falham em proteger as crianças?

Quanto à eficácia, é preciso pensar muito bem. Mesmo porque, em muitos casos, os pais estimulam os filhos ao uso da telinha.

Não há espaço para ilusões. A internet se tornou um espaço mapeado por especialistas para capturar dados e transformá-los em dinheiro – a rede não se interessa em saber se os dados se referem a menores de idade capturados pela sedução dos seus interlocutores digitais. Por sua vez, a ganância dos que utilizam os dados não reconhece limites éticos.   O panorama atual faz lembrar um depoimento de um engenheiro envolvido na construção da bomba atômica em Los Alamos: nossa função é produzir e lançar a bomba, onde ela cai não é problema nosso…

A internet é uma bomba atômica, mas uma bomba muito mais perigosa e proativa: faz de tudo para buscar os dados, de quem quer que seja, inclusive crianças. Meios tão sutis como brinquedos eletrônicos interagem carinhosamente com crianças, mas foram programados para capturar e fornecer o conteúdo dessas interações para quem sabe transformá-las em dinheiro.

É impressionante a quantidade de crianças e jovens menores de 13 anos com acesso à internet ou ao Instagram. Recente artigo de opinião distribuído em vídeo pelo NYT, em 24 de novembro de 2021, documenta o risco a que as crianças estão expostas: 40% das crianças de 9 a 12 anos afirmam usar o Instagram diariamente, e 78% o Youtube. Mas esse é o mal menor, mas não é tão menor assim. O mal maior está no conteúdo que lhes é exposto. Os programas infantis são apenas o pano de fundo a partir dos quais os caçadores de níqueis oferecem vídeos, informações de conteúdo inapropriado e procuram vender os mais variados produtos.

Há pelo menos duas vertentes importantes para aprofundar o debate. A primeira se situa na área da regulação – em que medida é necessária e como pode se tornar eficaz. Os inúmeros depoimentos de Frances Haugen, que recentemente se desligou do Facebook e botou a boca no trombone, deixam claro que o “inimigo” é extremamente competente: uma hidra cujas cabeças se multiplicam a cada paulada. Para ser eficaz, a regulamentação precisa ser inteligente e ágil. Dois desafios não triviais. Mas fica a sugestão para o legislador.

A segunda vertente envolve a sociedade como um todo. Trata-se do que estamos fazendo, como sociedade, com as nossas crianças. Michel Desmurget dirá que estamos transformando-as em cretinos digitais. Desmurget é um conceituado neurocientista francês, cujo livro “A fábrica de cretinos digitais”, originalmente publicado em 2019, foi traduzido há pouco para o Português. Cretinos digitais: uma geração que está atingindo um nível de QI mais baixo do que o de seus pais, revertendo uma tendência de mais de um século de crescimento.

O estrago das telinhas – especialmente para crianças abaixo de dois anos – já está contabilizado: é muito maior do que o estrago da pandemia. Além dos males causados à visão, a exposição a telas solapa a capacidade de atenção, concentração e foco, ingredientes essenciais para o sucesso escolar – e na vida. É a inteligência artificial contribuindo para reduzir a inteligência natural.

A nova geração de pais está dilapidando o capital humano da sociedade. E não sem uma ponta de hipocrisia. Pais instruem suas crianças a não falar com adultos. Mas fingem ignorar que a internet coloca adultos para interagir com eles – e são adultos com interesses muito bem definidos. Pais cuidam para que as crianças usem assentos com cinto de segurança e que não tenham acesso a venenos e materiais tóxicos. Mas não hesitam em deixar suas crianças usarem e abusarem do acesso ilimitado aos seus celulares, nos poucos minutos em que não estão grudados no mesmo. Até que ponto o direito dos pais conflita com os direitos da criança de desenvolver um cérebro de forma adequada? E os interesses da sociedade, que precisa de indivíduos capazes de contribuir para o conjunto?

As iniciativas de que ouvimos falar da China conflitam com nossas convicções democráticas. Há quem veja excessos no Estatuto da Criança e do Adolescente e na Lei Maria da Penha, que já fizeram incursões profundas pelos lares adentro. Haveria espaço para algo que seja aceitável e eficaz para proteger as crianças do emburrecimento progressivo? Para protegê-las dos perigos a que estão expostas, inclusive pela displicência dos pais e pela ganância sem limites viabilizada – que ironia – pela inteligência artificial?

Texto originalmente publicado no site Congresso em Foco, do UOL