“Funções executivas das crianças: evidências da capoeira” é tema de artigo da Oxford Economic Papers

Artigo publicado pela Oxford Economic Papers, do pesquisador Guilherme Hirata, da Consultoria IDados

798

Atividades físicas têm vários benefícios para a saúde mental e física, mas há pouca evidência para crianças em idade pré-escolar. O artigo testa se aulas de capoeira podem constituir um ambiente estimulante para desenvolver as funções executivas das crianças. O estudo explora um programa de capoeira implementado por pré-escolas do município de Petrolina – PE em parceria com o Instituto Alfa e Beto. A avaliação do programa contou com um desenho experimental, que designou escolas aleatoriamente para receber as aulas de capoeira.

Efeitos no controle inibitório das crianças, memória de curto prazo e flexibilidade cognitiva são analisados.

Os resultados mostram impactos positivos em controle inibitório e um impacto positivo, mas um pouco mais fraco, em memória de curto prazo. Além disso, as crianças que vivem em domicílios beneficiários do Programa Bolsa Família e as que possuem mães com baixa escolaridade tendem a apresentar maiores impactos.

Parceiro da Consultoria IDados, o Instituto Alfa e Beto trabalha para fomentar e fortalecer o debate educacional no Brasil tendo sempre como foco o aluno. O critério das nossas análises é a ciência: só é possível formular e avaliar políticas e práticas educacionais com base nas evidências científicas colhidas com rigor técnico.

Ao presidente do Instituto Alfa e Beto, João Batista Araujo e Oliveira, perguntamos por que o Instituto Alfa e Beto utilizou capoeira em seu programa de educação infantil em Petrolina.

Todas as iniciativas do Instituto Alfa e Beto se baseiam em evidências científicas. E, quando inovamos, sempre com base em ideias e intervenções que já foram validadas cientificamente, procuramos comprovar os resultados e o impacto de nossas intervenções.

A capoeira é considerada uma das artes marciais – atividades que constituem um misto de esporte e autodisciplina. Há vários estudos sobre outras artes marciais associados ao desenvolvimento de funções de controle executivo: o jogador de capoeira precisa planejar, prever e agir em função da ação do outro, seguir uma série de comandos em ordem – todas essas são habilidades fundamentais para promover o controle executivo.  E elas são críticas em crianças entre 3 e 5 anos de idade, que é a janela de oportunidade mais favorável para o desenvolvimento dessas habilidades.

O que são funções de controle executivo? Por que elas são importantes?

De acordo com Adele Diamond, uma das mais importantes estudiosas do tema, há três conjuntos básicos de funções de controle executivo: controle inibitório, memória de trabalho e flexibilidade cognitiva. Controle inibitório se refere à habilidade de controlar os impulsos, está ligado à ideia de disciplina, autocontrole; memória de trabalho se refere à habilidade para reter informações necessárias para executar uma tarefa ou resolver um problema; flexibilidade cognitiva se refere à capacidade de adaptar-se a diferentes situações ou mudar de perspectiva. A capoeira é especialmente bem talhada para ajudar a desenvolver a primeira dessas habilidades: o controle inibitório. Mas, possivelmente, também pode ser muito útil para desenvolver as demais, especialmente a flexibilidade cognitiva, pois o indivíduo precisa contra-atacar com base no que faz o outro jogador.

O que há de interessante no programa Nova Semente de Petrolina? Por que o Instituto Alfa e Beto se associou a esse programa? E por que introduziu capoeira no Programa?

O Programa Nova Semente foi instituído em 2010 pelo então Prefeito de Petrolina, e constituiu uma das iniciativas mais criativas para lidar com o desafio das creches naquela década. Fomos convidados pelo então Prefeito Julio Lóssio para apoiar a política de educação infantil do município e dar a orientação pedagógica a partir desse programa. Durante vários anos implementamos uma série de inovações que foram objeto de avaliações importantes – uma delas foi o desenvolvimento de habilidades dos educadores usando a metodologia CLASS. Temos estudos publicados a respeito do impacto positivo desse programa.

Nós introduzimos a capoeira por uma razão muito simples. Em um dos nossos seminários internacionais convidamos a Dra. Adele Diamond para compartilhar conosco suas experiências. Eu já a conhecia há anos, ela foi mentora do programa Tools of the Mind, em que nos inspiramos, em grande medida, para desenvolver os programas de creche e pré-escola do Instituto Alfa e Beto. Ao conhecer as atividades do Instituto na área de educação infanti ela mencionou as evidências sobre o impacto de artes marciais no desenvolvimento de funções executivas e nos motivou a pesquisar se a capoeira também teria o mesmo impacto.

Como isso pode ser aplicado a outras creches e pré-escolas?

O estudo do professor Guilherme Hirata mostra que o uso regular da capoeira contribuiu bastante para o desenvolvimento das funções de controle executivo, especialmente o controle inibitório. Nosso programa incrementou alguns dos comandos e orientações – com o objetivo de maximizar esses ganhos. Estamos à disposição de quem estiver interessado em replicar o modelo – se bem aplicado certamente terá muito êxito.

Em que outras contribuições o Instituto Alfa e Beto promoveu na educação infantil no Brasil?

A educação infantil foi o tema de um dos primeiros seminários internacionais promovidos pelo Instituto Alfa e Beto (2006). Naquela época havia alguns movimentos que promoviam a mobilização em torno do tema. O seminário que promovemos trouxe ao Brasil, pela primeira vez, um conjunto sólido de evidências e uma análise das políticas de primeira infância adotadas em diversos países – notadamente nos países da OCDE. A partir daí – e das evidências sobre o tema – desenvolvemos diversas iniciativas pioneiras, entre elas:

· A divulgação da ideia e instrumentos para leitura desde o berço. Patrocinamos a “Biblioteca do Bebê” na Bienal Internaccional do Livro de 2010, quando lançamos – de forma pioneira no país – uma série de livros próprios para essa faixa etária (Coleção Primeiros Leitores?) bem como um catálogo com o provocativo título “Os 600 livros que toda criança deve ler antes de entrar na escola”. Nossos grandes parceiros nessa etapa foram a Dra. Peri Klass, do programa Reach Out and Read, e o Dr. David Dickinson, especialista em leitura para crianças e Dan Willingham, especialista em ciência cognitiva da Universidade de Virginia que participaram de alguns de nossos seminários internacionais e que nos ajudaram a amadurecer nossas ideias e estruturar nossos programas de maneira consistente com as evidências.

· Outra importante iniciativa foi o programa Família que Acolhe, da Prefeitura Municipal de Boa Vista, com o qual estivemos associados durante vários anos. O programa foi desenvolvido com a equipe do Dr. Alan Mendelsonh, da Faculdade de Medicina da New York University. Nesse contexto desenvolvemos e implementamos os programas da Universidade do Bebê e produzimos várias pesquisas já publicadas em revistas internacionais.

· Junto com esses programas desenvolvemos nossos programas para creches (Zero a Quatro na Palma da Mão) e o Programa Alfa e Beto para a Pré-escola.

· Em 2016 publiquei o livro “Desenvolvimento Infantil: o que desenvolve” – que vem sendo usado por inúmeras instituições de formação de professores, como também pelos professores que participam de nosso programa. Recentemente tive a honra de proferir a aula inaugural de um curso de especialização em neurociência que tinha este livro como a principal referência bibliográfica.

Confira ainda parte da entrevista com o pesquisador Guilherme Hirata.

Por que um economista se interessou por estudar o impacto da capoeira em instituições de educação infantil?

Existe um consenso na literatura especializada de que o investimento na primeira infância (zero a 5 anos) é o que apresenta o maior retorno em termos de formação de capital humano. Mas a maioria dos programas avaliados não inclui atividades físicas e se preocupa mais com ações que promovam habilidades em linguagem e matemática. Como a capoeira é bastante disseminada no país com muitos adeptos, inclusive entre as crianças, esse projeto foi uma oportunidade para avaliar se atividades físicas, em geral, e artes marciais, em particular, poderiam ser uma alternativa de investimento que promovesse especificamente a melhoria das funções executivas.

O que esse experimento contém de original?

A união de três fatores. O primeiro é a avaliação da própria capoeira, para a qual não havia uma avaliação rigorosa no sentido metodológico. O segundo é a idade das crianças, todas em idade pré-escolar, em torno dos 5 anos. A maioria dos estudos relacionados a atividades físicas envolvem crianças mais velhas. E o terceiro é o tamanho da amostra: foram quase 2000 crianças participantes do projeto. Na literatura, observa-se que a amostra raramente alcança 200 participantes.

Como foi feito o experimento?

O experimento seguiu o “padrão ouro” da avaliação de impacto. As escolas foram separadas em dois grupos, sendo que um dos grupos recebeu o “tratamento”, ou seja, tiveram aulas de capoeira até 3 vezes por semana durante um semestre escolar, enquanto o outro grupo manteve sua rotina na pré-escola. A formação dos grupos ocorreu por sorteio para garantir que os dois grupos de crianças fossem semelhantes. Antes do início do programa e ao final, o nível de função executiva de cada criança foi medido por meio de testes apropriados. A diferença de desempenho entre os grupos nesses testes foi usada para estimar se o programa teve efeito ou não.

Quais foram os principais resultados? Os resultados confirmaram as expectativas?

Houve um efeito positivo importante em controle inibitório e um efeito mais moderado em memória de curto prazo. Isso faz todo o sentido ao se pensar em como a capoeira é praticada, com cada participante da roda tendo que esperar sua vez e seguir os comandos do mestre. Por outro lado, era esperado um efeito sobre flexibilidade cognitiva, novamente pelas características da prática, mas isso não ocorreu.

Que lições podemos tirar?

A principal lição é que a capoeira pode promover o desenvolvimento de funções executivas já na primeira infância, desde que a atividade seja adaptada para a idade da criança. Além disso,

há evidência de que o impacto possa ser maior para crianças de famílias mais vulneráveis. Boa parte da pesquisa sobre funções executivas busca analisar como a tecnologia (jogos de computador, por exemplo) poderia auxiliar o desenvolvimento dessas habilidades. A avaliação mostra que há alternativas para crianças com pouco ou nenhum acesso a computadores, celulares, internet.

Que outros estudos podem ser feitos para aprofundar o assunto e saber mais sobre o uso de instrumento como capoeira para promover o desenvolvimento de funções executivas?

Embora tenha sido um estudo com grande amostra, o resultado é específico a Petrolina, no contexto da proposta do programa Nova Semente, com toda sua estrutura e organização da época. Por isso, seria importante tentar replicar o estudo em outros lugares, mesmo com amostras menores, para analisar a importância do contexto educacional e socioeconômico. Seria interessante também analisar o efeito utilizando outros instrumentos que meçam funções executivas, para verificar se os resultados (ou ausência deles) são específicos aos utilizados neste projeto.

Acesse a publicação em: https://academic.oup.com/oep/advance-article-abstract/doi/10.1093/oep/gpac027/6613225