Ler para crianças desde cedo estimula habilidades linguísticas e emocionais, diz estudo

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Reportagem publicada no site da revista Época

Às 7h30 da manhã, Regilda Marques de Sousa, de 34 anos, sai de casa para vender cosméticos. No caminho para o trabalho, ela deixa seu único filho, Israel, de 4 anos, na creche onde passa o dia. Mãe e filho, que moram na periferia da cidade de Boa Vista, em Roraima, só voltam a se encontrar pouco depois das 6 horas da tarde, quando o expediente e as atividades na escolinha terminam.

À noite, a rotina na casa de Regilda e Israel não é mais a mesma desde 2015. “Antes, eu chegava, ligava a televisão, ia pôr a roupa suja na máquina e logo chegava a hora de dormir. Meu filho ficava vendo desenho o tempo todo”, diz ela. Regilda conta que, agora, Israel chega em casa ansioso para ler, na companhia dela, os livros que pega na escola. “Ele manda eu desligar a televisão e largar o celular.”

O interesse do menino por literatura infantil não surgiu por acaso. Em março do ano passado, ele e a mãe passaram a fazer parte de uma pesquisa realizada em creches de Boa Vista – as chamadas casas-mãe, que atendem crianças de 2 a 4 anos de idade. Durante oito meses, pais foram estimulados a ler dois livros por semana para seus filhos. Realizado por pesquisadores da Faculdade de Medicina de Nova York, em parceria com o Instituto Alfa e Beto, o estudo teve como objetivo avaliar o impacto que a leitura e a interação familiar teriam no desenvolvimento dos pequenos.

Entre as creches públicas da cidade, foram sorteadas 22: metade fez parte do grupo experimental, que sofreu as intervenções dos pesquisadores. As demais 11, integrantes do chamado grupo de controle, continuaram em sua rotina, para que fosse possível a comparação de dados depois do experimento. Educadores de todas as creches da cidade já seguiam um programa regular de leitura para as crianças. A pesquisa se propôs, nas 11 unidades selecionadas, a avaliar o impacto do envolvimento dos pais no processo. “O que mais contribui para o desenvolvimento das habilidades acadêmicas de um indivíduo não é o que acontece na escola, mas o que acontece em casa nos primeiros anos de vida”, afirma João Batista Oliveira, psicólogo e presidente do Instituto Alfa e Beto.

Mães ou pais de 305 famílias passaram a frequentar reuniões com educadores a cada três semanas, nas quais aprenderam o método chamado de leitura interativa. “Enquanto leio, pergunto para meu filho qual é a cor dos personagens, o tamanho das figuras e o nome dos animais”, diz Regilda. “Ele até pede para eu fazer drama quando interpreto as falas dos personagens. Ele arregala os olhos!” Segundo João Batista, essa é uma forma lúdica e participativa de despertar a curiosidade das crianças e estimular habilidades cognitivas. “Os pais foram incentivados a conversar mais com os filhos em casa ou no mercado”, afirma o pesquisador. “Para impulsionar o desenvolvimento, é importante fazer relações entre a leitura do livro e a leitura do mundo.”

Ao final da pesquisa, em novembro de 2015, pais e filhos passaram por mais uma bateria de testes e questionários. Nível de vocabulário, controle emocional, hábitos alimentares e qualidade das relações familiares foram alguns dos pontos analisados. O mesmo foi feito oito meses antes de o estudo começar. A partir da comparação dos dados, foi aferido que 50% das famílias passaram a ler com os filhos no mínimo três vezes por semana; houve um aumento de 14% no vocabulário das crianças e de 27% na capacidade de elas memorizarem informações; o número de crianças que não apresentaram problemas de comportamento, como agressividade, aumentou 25%. Além disso, verificou-se que, em vez de punição física, alguns pais passaram a recorrer à conversa para para resolver possíveis conflitos.

Esses e outros resultados foram apresentados nesta quarta-feira (6), em audiência pública no Congresso Nacional. O evento faz parte do IV Seminário Internacional do Marco Legal da Primeira Infância, que tem o objetivo de aperfeiçoar a legislação, sancionada em março deste ano, que estabelece políticas públicas para os primeiros anos de vida – de 0 a 6 anos.

“Estou muito feliz com o resultado do projeto. O objetivo é mudar uma geração”, afirma Teresa Surita, prefeita de Boa Vista. Ela, que pretende ampliar a abrangência desse e de outros programas voltados para famílias e crianças até os 6 anos, destaca a importância do investimento na primeira infância. “É durante a primeira infância que acontecem as principais conexões do cérebro. Os maiores resultados serão percebidos quando essas crianças tiverem cerca de 15 anos. É um investimento de longo prazo.”

Entre os grandes méritos da pesquisa, Teresa destaca o fortalecimento do vínculo entre pais e filhos. Regilda concorda com ela. “Hoje, além de o meu filho ser uma criança muito mais curiosa e inteligente, estamos muito mais próximos”, diz ela. “Dou muito mais atenção a ele. Para mim, ler com ele não é uma obrigação, é algo prazeroso.”