Base curricular em debate

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Artigo publicado no portal Congresso em Foco.

Em debate a Base Nacional Comum – uma proposta de currículo para a educação básica. Neste dia 31 de maio de 2016, a Comissão de Educação e Cultura da Câmara realiza uma série de audiências sobre o tema. Nosso objetivo é colocar em perspectiva os desafios do Ministério da Educação face ao novo cenário criado com o processo de impeachment. Cabe louvar a iniciativa da Câmara, que, até o momento, constitui a única instância para debater a questão, sem o açodamento que vem caracterizando a condução do assunto. São quatro as questões centrais aqui discutidas:(1) a mudança no cenário político; (2) os problemas com a proposta anterior; (3) o que precisa ser feito; e (4), o papel do Congresso Nacional.

Mudanças no cenário político

O governo mudou, reflexo de um desejo expresso por parcelas significativas da sociedade por novas formas de governança, de uso de recursos públicos e de novos comportamentos, especialmente por parte do Congresso Nacional. A sociedade clama – no meio a tanta cacofonia e interesses diversos – por uma nova institucionalidade. Aprendemos a reconhecer diferenças, agora precisamos aprender a conviver com elas de forma democrática.

Nesse contexto é imperativo que o MEC retome o controle sobre a elaboração da Base Nacional Comum. Depois de décadas de oposição ostensiva à ideia de currículo por parte dos grupos que o apoiavam, o governo impugnado tomou a decisão de elaborar uma Base Nacional Comum. Mas o fez de forma açodada, com prazos muito curtos e sem respeito aos cuidados e processos usuais para esse tipo de trabalho.

A ideia de ter um currículo é muito boa. Mas fazê-lo de forma atropelada é desastroso. O novo governo tem o direito e o dever de reexaminar o que foi feito, corrigir o que precisa ser corrigido e fazer avançar o processo. O Congresso Nacional – que teve um papel fundamental em avaliar a pressão popular por uma nova institucionalidade – também pode desempenhar um papel significativo criando espaços e condições políticas para que o novo governo tome o tempo necessário para se manifestar.

Principais problemas com a proposta anterior

Currículo é parte de um contexto que também envolve questões relacionadas com professores, avaliação e o sistema escolar. É possível mexer só em um aspecto de cada vez – mas isso sempre afeta os demais, que precisam ser levados em consideração. Desses quatro pilares de um sistema educativo, temos alguma experiência positiva com avaliação. Nossa concepção e operação de escolas e sistemas escolares é ínfima, a situação do magistério é calamitosa. E não temos currículo. Isso decorre da falta de valor que as instituições e a sociedade atribuem à educação. Dado esse cenário, seria fundamental aprender a partir da experiência dos melhores países.

Um currículo se implementa num sistema escolar, portanto o ponto de partida é a definição deste e de suas articulações. A proposta curricular apresentada padece de duas falhas graves decorrentes de falta de orientação. Primeiro não há uma articulação entre os níveis – particularmente entre a educação infantil e o ensino fundamental. Segundo não houve uma definição prévia da estrutura do ensino médio – que clama por diversificação.

Definidas as articulações, cabe definir a amplitude. A decisão tomada foi de ocupar todo o espaço – fazer currículo para todas as disciplinas e níveis – apesar da falta de experiência do país, especialmente do governo federal, com esse tipo de atividade. A ideia de usar experiências curriculares de estados e municípios sem avaliar sua qualidade é no mínimo bizarra. A ideia de que a Base Nacional Curricular corresponderia a 70% do total de atividades não ficou clara – ninguém sabe o que significam os demais 30% e a quem cabe preenchê-los. A experiência internacional mostra que a única opção de interesse é aquela que dá direito de escolhas ao aluno – e não a instâncias intermediárias. E que talvez fosse mais prudente começar definindo currículo para poucas disciplinas básicas.

Um terceiro aspecto refere-se ao processo. Na experiência internacional há um ritual: revisão da literatura sobre currículo; revisão ampla das práticas dos países-referência (benchmarks) e, a partir de um debate qualificado, definição das linhas gerais que deverão ser seguidas pelos elaboradores da proposta, inclusive cabem definições e diretrizes que servirão para avaliar a proposta – foco, rigor e coerência são critérios universalmente aceitos e adotados entre os especialistas da área.

A ideia de incluir “temas transversais” já havia sido introduzida nos “Parâmetros Curriculares” e merece reflexão. Como já observado por Bráulio Porto de Matos, da Universidade de Brasília, isso é parte sutil da expansão do gramscismo no sistema escolar brasileiro, cujo objetivo é conquistar a hegemonia ideológica. A forma de “entregar” o currículo aos alunos cabe às escolas, na implementação de suas propostas pedagógicas – jamais caberia num currículo nacional. Para evitar esses erros grosseiros de governança, governos precisam exercer o seu papel de governo – e não de militante.

A partir daí se escolhem pessoas de experiência e qualificação comprovada, para elaborar as propostas. Esse processo inclui vais-e-vens e debates genuínos para ouvir as várias tendências e acertar rumos de maneira consistente. Nesses debates emergem questões pertinentes à formação dos professores, livros didáticos e avaliação – que, embora não sejam alvo do trabalho, devem estar presentes na mente dos autores. Quando houver uma versão satisfatória inicia-se uma discussão menos técnica e mais pragmática, envolvendo atores relevantes – sistemas de ensino, agências de formação, professores experientes, especialistas em avaliação. Daí surgem sugestões para aprimorar a proposta e realizar uma segunda versão.

Esta segunda versão normalmente é aprovada pela autoridade competente, implementada e ajustada ao longo de alguns anos – mas nada impede que, antes da implementação, ela seja objeto de projetos-piloto. Consultas públicas amplas podem servir para motivar a população em geral e os educadores para o tema – mas não há qualquer evidência de que isso seja ou tenha sido útil ou eficaz.

O que precisa ser feito

O que precisa ser feito agora é retomar as rédeas do processo e implementar o processo devido. O caminho poderá ser muito mais breve tendo em vista o que já foi realizado e muito do que pode ser aproveitado. Ademais, o país não sofrerá mais a imposição dos grupos que se opunham a ideia de currículo – esta já foi aceita. Mas antes de avançar é preciso resolver as questões básicas indicadas acima, especialmente a interrelação das etapas, a questão do ensino médio, a extensão em número de disciplinas e tempo do currículo, bem como os ordenamentos técnicos e critérios comuns.

A partir daí pode-se aproveitar o que foi feito como ponto de partida – mas é essencial que as equipes responsáveis sejam compostas por profissionais de reconhecida experiência acadêmica e profissional na área e que seus trabalhos sejam públicos e confrontados com debates que possibilitem o efetivo exercício do contraditório. Aí sim, teremos bases sólidas. E, quem sabe, poderemos adotar o nome mais simples de currículo ou programa de ensino – tão caros à tradição pedagógica em todo o planeta.

O papel do Congresso

Currículo não é matéria de lei. A Lei já diz que é preciso ter um currículo e que cabe ao governo federal articular a sua elaboração. Currículo não deve ser matéria de lei por duas razões principais. A primeira é que o processo de formulação de leis é necessariamente político e envolve barganhas que podem sacrificar a essência do que se quer. Os critérios de acomodação de divergências devem ser acadêmicos, fundamentados, e, portanto, diferentes dos critérios da barganha política. A segunda é a rigidez – uma lei é mais difícil de mudar, currículos devem ser relativamente estáveis, mas apenas relativamente. Precisam ser revistos sem que haja necessidade de revisar leis.

O que o Congresso pode fazer é assegurar condições – inclusive políticas – para que o executivo cumpra a sua tarefa de forma adequada – para isso são louváveis e necessárias audiências públicas em que o Executivo, os especialistas e outras vozes da sociedade, concordantes ou não, se façam ouvir.

*João Batista Araujo e Oliveira é presidente do Instituto Alfa e Beto. Ilona Becskeházy é jornalista e mestre em Educação.