Nota do Instituto Alfa e Beto:
Este artigo foi publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo
Ainda não. Deu fumaça preta. Mas temos um ensaio: o Ministério da Educação (MEC) enviou ao Conselho Nacional de Educação (CNE) o embrião do que poderia vir a se tornar um programa de ensino.
Os países com bom desempenho em educação têm uma orientação sobre o que deve ser ensinado nas escolas. Varia o nível de especificidade e detalhe, mas é possível identificar características comuns. Prevalece uma ordenação consistente em termos do que se deve ensinar em cada etapa e série escolar, bem como a articulação entre as várias etapas e os níveis de ensino. As propostas mostram o que deve ser ensinado, não perdem tempo com justificativas, discussões teóricas, metodológicas ou pedagógicas.
Tais documentos refletem o estado da arte e as melhores práticas em educação e por isso são elaborados por pessoas que conhecem as disciplinas, sua estrutura e as implicações para o ensino. Os melhores têm foco, rigor e coerência – que são os três critérios essenciais para avaliar um documento dessa natureza. Em alguns países o processo envolve uma certa busca de consenso entre especialistas, o que por vezes gera compromissos, mas não afeta a integridade do trabalho.
Com base nesses documentos – os reais programas de ensino – é possível derivar programas de formação de professores, avaliações, produção de livros didáticos ou currículos ainda mais detalhados para redes de ensino ou escolas. O Brasil não dispõe de nada semelhante, nem está prestes a ter. E tanto “programa” como “currículo” são palavras proscritas pelos ideólogos de plantão.
O que vigora no País são os Parâmetros Curriculares Nacionais, um documento que já nasceu superado em vários aspectos e não contribuiu para avançar em nenhum dos desdobramentos citados acima. Ao contrário.
Agora o CNE está diante de uma proposta de “direitos de aprendizagem”, limitada aos três primeiros anos do ensino fundamental, batizada com o inadequado nome de “ciclo de alfabetização”. A sociedade brasileira merece entender do que se trata, as razões por que deveria ser rejeitada essa proposta e os caminhos que o Brasil poderia seguir, se quiser avançar.
A proposta de um “ciclo de alfabetização” para as três séries iniciais do ensino fundamental é uma aberração. Se fôssemos considerar um ciclo de alfabetização, este deveria ser iniciado na educação infantil e ser concluído no final do primeiro ano do fundamental. Qualquer coisa diferente disso supõe um entendimento não ortodoxo do que seja alfabetizar. O que, aliás, acontece com as autoridades brasileiras, estranhamente apoiadas pelos Conselhos de Educação dos secretários estaduais e municipais. A hipocrisia é que os filhos e netos desses senhores estão matriculados em escolas privadas e se alfabetizam, no máximo, no primeiro ano do fundamental.
O documento do MEC define corretamente o que seja alfabetizar: ensinar o código alfabético. E considera, também corretamente, que alfabetizar não é a única tarefa da escola, tampouco suficiente para levar o aluno a compreender textos. Mas comete uma incorreção ao se valer do vago conceito de “letramento” para justificar a ideia do ciclo. O “letramento” é assim definido: “(…) termo que vem sendo utilizado para indicar a inserção dos indivíduos nesses diversos espaços sociais. Cada pessoa, ao ter que interagir em situações em que a escrita se faz presente, torna-se letrada. Não há indivíduos iletrados em uma sociedade em que a escrita está presente nas relações sociais, pois de forma autônoma ou mediada por outras pessoas todos participam dessas situações”.
Duvido que alguém compreenda o que isso signifique. Consequentemente, fica prejudicada a ideia de formular um currículo (ou lista de direitos de aprendizagem) que se encerraria nesse período de três anos. Se o conceito se referir ao ensino da língua, a proposta deveria incluir pelo menos todo o ciclo do ensino fundamental – e possivelmente algo do ensino médio. Se for outra coisa, então precisamos saber do que se trata. Mas certamente não é algo que se conquista ao final do terceiro ano do fundamental. E certamente nada tem que ver com alfabetização.
Ao formular ideias sobre alfabetização e ensino da língua portuguesa durante esse ciclo da alfabetização, o documento apoia-se em teorias superadas e ideias que nunca deram certo – e que ignoram os avanços científicos tanto sobre alfabetização como sobre ensino de compreensão e sobre ensino da língua. Esse é um erro imperdoável cometido pelo MEC e pelos grupos das universidades que o ministério arrola entre os segmentos que consultou. A sociedade merece um mínimo de compromisso da Academia com o conhecimento científico.
Nos últimos anos houve um enorme avanço científico a respeito dessas questões. Nosso saber ainda é restrito, mas o que já conhecemos provocou, nos países que avançam na educação, importantes mudanças no ensino da alfabetização, da língua e na forma de ensinar, tudo o que favorece a compreensão e não se limita ao ensino da língua. Nem nos países de língua inglesa, cujo código alfabético é extremamente complexo, se adia para oito anos o “ciclo da alfabetização”.
Mais uma vez, no afã de inovar, o Brasil entra na contramão, de marcha à ré e em alta velocidade. São bilhões de recursos torrados no ralo da inépcia e do açodamento. O que está por trás desse ato inconsequente é uma concepção ideológica de alfabetização e de ensino da língua. Há real ojeriza ao desafio de estabelecer programas de ensino comuns ao País e uma profunda repulsa a incorporar conhecimentos científicos e as melhores práticas para fazer a educação funcionar.
Diante disso, e da falta de debates, resta à sociedade brasileira colocar placas gigantescas na porta de entrada do Conselho Nacional de Educação: “Cuidado! Crianças!”.