Nota do Instituto Alfa e Beto:
Este artigo faz parte de uma série de artigos publicados no site Veja.com no âmbito da parceria no Prêmio Prefeito Nota 10, instituído pelo Instituto Alfa e Beto
Para exercer sua função, todo prefeito precisa entender os fundamentos básicos das várias áreas de atuação da Prefeitura: abastecimento, saneamento, saúde pública, transportes e mobilidade urbana, código de obras, contabilidade pública etc etc. Não basta escolher as pessoas certas para cuidar de cada setor. O prefeito precisa ter um mínimo de informação e conhecimento sobre os setores e os interesses em jogo para saber ouvir, avaliar e tomar decisões.
Isso também se aplica à educação. Não basta saber a nota que o município tirou no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), é preciso entender o que leva o município a atingir uma determinada nota. Não basta escolher um secretário por critérios de acerto de contas político, lealdade ou mesmo competência. Quem responde perante a população é o prefeito e sua equipe o faz apenas por delegação.
Tratamos aqui apenas de dois conceitos fundamentais para entender educação: o conceito de escola e o conceito de pedagogia. No debate político e nos embates quotidianos da gestão da educação, esses dois conceitos estão intimamente ligados.
Para que serve a escola? Em que consiste o debate? Há duas correntes principais sobre esse tema.
Uma corrente advoga que a função principal da escola é transmitir o patrimônio cultural acumulado pela humanidade, de forma que o aluno conheça e aprecie o conhecimento produzido até hoje e seja capaz de fazê-lo avançar. O nome “ensino tradicional” ou “escola tradicional” está associado à ideia de tradição, que tipicamente é transmitida na forma das “disciplinas escolares”. Essa corrente vem perdendo terreno no último século, mas ainda é dominante na maioria dos países desenvolvidos e em parte da América do Norte.
A outra corrente advoga que o objetivo principal da escola é promover a auto realização, tornar as pessoas autoconfiantes e felizes. A escola deixa de ser responsável por transmitir a herança cultural entre as gerações: seu objetivo agora é promover a “auto realização”. No limite isso significa liberar os alunos de deveres enfadonhos e repetitivos, da disciplina e do rigor necessários para aprender, da aprendizagem de conteúdos obrigatórios e introduzi-los a um mundo de aprendizagem livre de coerções apoiado pela simpatia e encorajamento. O professor torna-se um apoiador, ajudando o aluno a descobrir por si mesmo o que – num certo sentido – ela já sabia. Essa tradição firmou suas raízes a partir das publicações do filósofo norte-americano John Dewey no início do século XX e foram introduzidas no Brasil por Anísio Teixeira. Paulo Freire aprofundou uma vertente dessa corrente, ao criticar a ênfase excessiva da escola tradicional no que denominou de pedagogia “bancária”, representada pelo ensino e “cobrança” de conhecimentos e conteúdos – cujo ensino estaria em detrimento da formação do espírito crítico. Nessa vertente, o ensino vira militância.
Na maioria das escolas hoje temos uma mistura dessas duas versões, e essa mistura não costuma funcionar bem, pois no compromisso entre elas perdeu-se a clareza sobre o que esperar da escola e o que cobrar dela.
O que é pedagogia? O que é importante o prefeito saber a respeito de pedagogia?
Pedagogia, no sentido tradicional, refere-se ao conjunto de métodos e técnicas utilizados para promover o ensino. A pedagogia tornou-se uma disciplina quando os países precisaram universalizar a educação para fazer face aos desafios da revolução industrial, especialmente a partir do século XVIII. Nesse sentido a pedagogia refere-se aos instrumentos do professor/educador para exercer o seu ofício.
Atualmente, e especialmente no Brasil, a palavra pedagogia assumiu diversos outros sentidos. Geralmente é usada no sentido mais amplo, como sinônimo de “educação” ou até mesmo “ciência” ou “ciências da educação”. Assuntos com a definição da função da escola e o que nela se deve ensinar – tema de natureza eminentemente política e filosófica – costumam ser capturados e restritos ao debate pedagógico ou considerados “reserva de caça” dos educadores. Um exemplo claro é a ideia, corrente no Brasil, de que cabe à escola e a cada professor decidir sobre o que ensinar.
A perda de uma noção clara sobre o papel da escola na sociedade aliada à confusão sobre o sentido e lugar da pedagogia tornou disseminada a ojeriza cultivada no país à ideia de currículos, programas de ensino ou qualquer tentativa de se organizar as redes de ensino. Ao mesmo tempo, o pensamento que se tornou hegemônico na educação defende uma autonomia irrestrita das escolas e professores, até mesmo para estabelecer o que deve ser ensinado em cada série escolar – e até mesmo há os que acham que ensinar é algo secundário.
O monopólio da discussão e a adoção de ideias que se tornaram quase hegemônicas também vem contribuindo para disseminar a ideia de que educação é algo para os educadores e para os professores – e não primordialmente para a sociedade e para os alunos. Três exemplos ilustram o ponto. Primeiro, todos os fóruns e “pactos” que se tornaram moda realizar no Brasil ficam restritos a debates entre um subconjunto de educadores pré-selecionados. Aqui e ali se fazem concessões para ouvir alguns grupos de pressão apenas para cumprir tabela. O processo de “debate” que levou à aprovação da Lei do Plano Nacional de Educação é um exemplo disso. Segundo, todas as “conquistas” alardeadas pelas corporações profissionais referem-se a benefícios adquiridos pela classe, não a avanços no desempenho dos alunos. Terceiro, nas inúmeras greves que ocorreram nas últimas décadas, a greve sempre começa com uma lista de dezenas de reivindicações a favor da escola pública. E a greve termina quando se faz o acordo salarial – sem qualquer menção às demais questões.
Não se pode censurar os sindicatos e professores para lutar por melhores salários e condições de trabalho. Nada mais justo, eles existem para isso. Mas podemos censurar os governos e responsáveis pela educação ao ignorar sua função e suas responsabilidades. É pouco o que o prefeito precisa saber sobre educação. Mas esse pouco é fundamental para entender o que compete à Prefeitura, o que compete às escolas e o que compete aos professores. Educação tem um único objetivo: assegurar o sucesso do aluno – que é a condição de sobrevivência da espécie, da nossa sociedade.