Presidente do Instituto Alfa e Beto, Dr. João Batista comenta sobre a BNCC

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A BNCC avança em relação ao passado (PCNs).

É um documento razoável, mas não chega a ser um documento de padrão internacional. Em algumas áreas é profissional, em outras, deixa muito a desejar.

O objetivo de um currículo ou programa de ensino é estabelecer as aprendizagens básicas que todos os cidadãos devem adquirir na escola. A qualidade se afere na medida em que o currículo permite ao aluno ampliar e aprofundar os conhecimentos. Para isso precisa ter foco, rigor e coerência – esses são os critérios básicos para se avaliar um currículo.

Saiba mais sobre a opinião do presidente do Instituto Alfa e Beto, João Batista Araujo e Oliveira.

Os pontos positivos mais importantes:

1. Apresenta orientações claras sobre o que fazer em cada série e disciplina (embora não use o termo “disciplina”).
2. Em várias disciplinas há uma progressão clara, que denota uma certa articulação entre diferentes séries.
3. Educação infantil: a proposta tem um princípio organizativo e indica um conjunto de ações e intervenções relevantes, inclusive a necessidade de preparar o aluno para o ensino fundamental.
4. Alfabetização: há uma clara indicação sobre o que é alfabetizar, que é necessário alfabetizar e que isso deve ser feito sobretudo no 1º ano.
5. Há reconhecimento da importância de desenvolver fluência de leitura e usar textos adequados a diferentes finalidades, inclusive para desenvolver a fluência de leitura.
6. Língua Portuguesa: há um reconhecimento maior da importância dos conhecimentos linguísticos.
7. O programa de Matemática é muito claro, consistente e apresenta estrutura e sequência adequadas.

Os pontos negativos mais importantes:

1. O documento é desnecessariamente complexo. É muito desigual entre as diferentes disciplinas.
2. O documento adota uma linguagem “construtivista” pouco alinhada com as evidências mais contemporâneas a respeito de como as pessoas aprendem. Termos como “letramento” são usados de maneira imprecisa (no caso da Língua Portuguesa) ou de impossível mensuração, como no caso dos currículos de Matemática e Ciências.
3. O currículo da educação infantil é fraco, não reflete a evolução da ciência do desenvolvimento humano e, assim, é insuficiente para promover a revolução necessária nessa área.
4. A abordagem da alfabetização avançou muito, mas ainda contém erros conceituais graves e muitas omissões. É a parte mais amadorística da BNCC.
5. No currículo de Língua Portuguesa a separação entre Leitura, Escrita e Conhecimentos Gramaticais/Linguísticos cria uma dicotomia desnecessária. Idem com respeito ao eixo “Literatura”, que poderia ser incorporado ao eixo de leitura.
6. O currículo de Ciências apresenta uma estrutura e sequência claras e consistentes, mas poderia ser enriquecido com a explicitação de conceitos estruturantes (como, por exemplo, a ideia de ciclos, sistemas, matéria e energia, evolução) que servissem como referenciais e elo de ligação entre suas unidades temáticas.

Um processo equivocado e uma oportunidade perdida

Sem dúvida a BNCC representa um avanço em relação aos PNCs e aos descritores da Prova Brasil – que vêm orientando as práticas educativas no Brasil. É melhor avançar com esse documento do que sem ele. Mas o processo equivocado para condução dos trabalhos constitui uma perda de oportunidade para promover avanços institucionais.

O processo foi inadequado. Apesar das diferenças entre currículos de diferentes países, o processo de revisão de um currículo nacional geralmente envolve (1) uma revisão do estado da arte (2) das melhores práticas (3) autores que apresentam e defendem suas propostas e (4) um processo de debate em que críticos qualificados apresentam suas críticas e as discutem com os proponentes. Depois de refinada a proposta, ela é apresentada para pequenos grupos de especialistas em avaliação, livros didáticos e professores altamente competentes para “aparar as arestas” e apreciar aspectos práticos de implementação. Nada disso foi feito no encaminhamento da BNCC. Ademais, bem ao gosto brasileiro, o documento é eivado de referências a leis, pareceres e outras iniciativas que, como sabemos, não têm contribuído para fazer avançar a educação no país.

Uma prova de que o processo seguido para elaboração da BNCC foi inadequado são as mudanças significativas ocorridas entre a 2a. e a 3a. versão – a versão final ora apresentada. Diferentemente de outros países, o currículo foi elaborado com olho no retrovisor – são citadas as leis, normas, pareceres e usada a linguagem dos documentos anteriores como ponto de partida.

Comentários sobre os aspectos formais do documento:

A estrutura do documento é desnecessariamente complexa. Na prática, se o leitor saltar as primeiras páginas e se concentrar nas especificações ele terá uma impressão mais favorável. Ele poderá identificar com clareza quais são as disciplinas, as unidades ou grandes áreas para organizar o ensino, os conteúdos ou tópicos principais (que receberam o apelido de “objetos do conhecimento”) e as habilidades , isto é, o nível de elaboração cognitiva (identificar, explicar, deduzir) em que os conteúdos devem ser elaborados.

A propriedade da apresentação de cada disciplina (palavra evitada no documento) varia nas diferentes áreas e nem sempre dá ideia da estrutura, sequência e aprofundamento existente – qualidade constitutiva de um currículo.

O documento afirma que se baseia no princípio das competências e cita o currículo de diversos países (EUA, Colúmbia Britânica, França, Portugal, Austrália). Esta é uma discussão complexa e pouco produtiva. Na prática, a BNCC procurou fugir de um nível de detalhamento dos conteúdos que tornasse o documento muito amarrado. Ao mesmo tempo, procurou estabelecer expectativas sobre o nível de aprendizagem. Por exemplo, a habilidade EF06CI14 do currículo de ciências diz “inferir que as mudanças na sombra de uma vara (gnômon) ao longo do dia em diferentes períodos do ano são uma evidência dos movimentos de rotação e translação do planeta Terra e da inclinação de seu eixo de rotação em relação ao plano de sua órbita em torno do Sol”.

O leitor atento saberá identificar onde estão os conteúdos necessários para que o aluno adquira a habilidade pretendida. Para adquirir a capacidade de inferir o aluno terá de adquirir muitas outras habilidades. As palavras “capacidade”, “competência” “habilidade” são importantes – mas sem conteúdo caem no vazio. A preocupação do documento é assegurar que não basta aprender conteúdos, é preciso utilizá-los para pensar. A questão prática será determinar – na elaboração dos livros didáticos e das aulas – a dosagem em nível e quantidade de conteúdos necessários para desenvolver essas habilidades.

Vale lembrar o que ocorreu em Portugal. Numa primeira versão o documento tentou ficar num nível muito geral, e o ensino não avançou. Isso levou o Ministério da Educação daquele país a elaborar um segundo documento mais detalhado. O diabo está nos detalhes.

O documento da BNCC também afirma – diferentemente do que ocorre comumente em outros países – que a progressão das aprendizagens – seja no sentido de processos cognitivos seja no sentido de objetos de conhecimento – não representa uma ordem esperada das aprendizagens – o que causa espécie tendo em vista que uma dos aspectos centrais na definição de um currículo tem a ver com a estrutura e sequência, que, quando correta, permite o aprofundamento progressivo dos conhecimentos.

Em síntese, o que aparece nos detalhamentos dos programas, de modo geral, é bem melhor do que as introduções e explicações gerais.

No restante desse documento fazemos alguns comentários sobre três documentos que nos pareceram mais problemáticos – a educação infantil, a alfabetização e Língua Portuguesa. Como é hábito de nosso comportamento profissional, sempre acompanhamos nossas críticas com sugestões concretas – no caso, nossa vivência e experiência com o desenvolvimento de currículos e programas de ensino no Instituto Alfa e Beto.

Educação infantil:

Ponto forte: O documento apresenta uma síntese das aprendizagens necessárias para a transição para o ensino fundamental (página 50): a pré-escola deve assegurar a prontidão das crianças.

Ponto fraco: A referida síntese não inclui habilidades essenciais para o processo de alfabetização (consciência fonológica, consciência fonêmica, conhecimento do alfabeto).

Organização: “direitos de aprendizagem e desenvolvimento”:

A BNCC enfatiza como direitos (conviver, brincar, expressar, conhecer-se) o que são características próprias do processo de desenvolvimento. Essa estrutura é muito pobre.

“Campos de experiência”:
O quadro abaixo compara a proposta da BNCC com a linguagem usual na maioria dos currículos dos países de elevado desempenho educacional:

Países de elevado desempenho BNCC
Desenvolvimento pessoal e social Eu e outros
Desenvolvimento Sensorial e Motor Corpo, gestos e movimentos
Desenvolvimento da linguagem Oralidade e escrita
Desenvolvimento cognitivo Espaço, tempo, quantidades etc.
Sensibilidade e expressão artística Traços, sons, cores e formas

A Base não explicita que os campos de experiência correspondem às áreas ou aspectos do desenvolvimento infantil. Em decorrência, o detalhamento dos objetivos de aprendizagem é muito limitado e insuficiente para orientar a elaboração de currículos robustos para a educação infantil.

Essa lacuna é grave na medida em que a Ciência do Desenvolvimento Humano vem apontando para a importância das experiências adequadas e em tempo oportuno durante a primeira infância. Esses aspectos são bem mapeados, a BNCC não leva isso em conta.

Essa lacuna é preenchida, em parte, pela “síntese das aprendizagens para a transição para o ensino fundamental”. Ela aponta para alguns dos fatores necessários para a “prontidão escolar”, mas é muito fraca em alguns aspectos críticos :

a. Repete a catilinária construtivista, “levantar hipóteses em relação à linguagem escrita, realizando registros de palavras e textos, por meio de escrita espontânea”.
b. Não fala em coisas importantes como conhecimento do alfabeto (que é relegado para o 1o ano do ensino fundamental), consciência fonológica, consciência fonêmica.
c. Não fala em grafismo/caligrafia (embora fale em coordenar habilidades motoras finas).
d. Fala em conhecimentos sobre gêneros e portadores textuais, função social da escrita etc. mas não fala em habilidades mais básicas como conhecimento das características formais dos textos impressos (capa, título, frente, verso, etc.)
e. As questões relacionadas com o desenvolvimento cognitivo são limitadas a poucos “clichês”, sem configurar estímulos para o desenvolvimento de currículos desafiantes.

Clique aqui para conhecer a proposta de currículo de educação infantil do Instituto Alfa e Beto

Alfabetização

A BNCC traz alguns avanços em relação aos PCNS e às propostas dos programas que o MEC desenvolveu nos últimos vinte anos, mas contém impropriedades, erros e omissões graves. Esta é a parte mais amadorística da BNCC.

Os principais avanços são (1) a definição de alfabetização (aprender a decodificar), (2) o reconhecimento da importância de ensinar de forma sistemática e explícita as correspondências entre grafemas e fonemas e (3) a necessidade de ensinar e aprender caligrafia.

Os principais erros:

Na página 63 o documento afirma que “a língua tem duas dimensões: é oral e escrita. Assim, sua aprendizagem considera o contínuo entre oralidade e escrita: na alfabetização, em que o oral é apresentado por notações (letras e outros signos), nos usos sociais da língua oral e nos usos sociais da leitura e da escrita – nas práticas de letramento”. Afirma que o oral é representado por notações e essa afirmação constitui erro crasso: o alfabeto, que representa o oral, é um código, o que é muito diferente de um sistema de notação (como as pautas musicais ou notações matemáticas). Ele implica um registro mas também o entendimento de relações relativamente complexas entre os fonemas representados pelas letras (grafemas). Num debate nacional sobre currículo e alfabetização é fundamental evidenciar esse tipo de erro, pois ele revela intenções – defendidas durante décadas pela maioria da comunidade de educadores do Brasil – de desenfatizar a importância do ensino do código alfabético. Embora o documento reconheça essa importância, comete um grave erro conceitual ao tratar o alfabeto como um sistema de notação.

Alfabetização e letramento(página 69). O texto afirma: “em síntese, o “letramento” é condição para a alfabetização, para o domínio das correspondências entre grafemas e fonemas, mas a alfabetização é a exploração sistemática dessas relações grafofonêmicas são também condição para o letramento”. Em nenhum momento o termo define o que é letramento, portanto a afirmação não tem sentido. Na página 67 o termo “letramento”é novamente usado sem uma definição: “amplia-se o letramento por meio da progressiva incorporação de estratégias de leitura em textos de nível de complexidade crescente, assim como no eixo Escrita pela progressiva incorporação de estratégias de produção de textos, no eixo Educação Literária etc. Mas o documento não define o que é “letramento”.

Hipóteses sobre aprendizado da língua escrita (p. 69). “Do mesmo modo, o conhecimento das hipóteses feitas pelas crianças no aprendizado da língua escrita é condição fundamental para o seu aprendizado”. Essa tese, defendida nos anos 70 do século passado, por Emília Ferrero, já foi cabalmente superada por evidências científicas produzidas em diversos países, inclusive no Brasil (vide estudos de Cláudia Cardoso-Martins e Tatiana Pollo, entre outros).

As principais impropriedades

Embora reconheça a especificidade da alfabetização (pagina 67) a alfabetização é tratada na camisa de força dos 5 eixos da proposta, e é separada em Unidades Temáticas (Oralidade, Leitura, Escrita, Conhecimentos linguísticos e gramaticais e Educação Literária). Não há qualquer indicação de ênfase e prioridade ao ensino da alfabetização, ao contrário, as especificações referentes ao componente “educação literária” sejam desproporcionalmente maiores.

Ao tratar da alfabetização (p. 67) o documento fala que “sistematiza-se a alfabetização, particularmente nos dois primeiros anos”. Mas nada existe no detalhamento que trate da alfabetização a partir do 2º ano, e mesmo no segundo ano o tratamento dado refere-se essencialmente a aspectos de morfologia, e não de alfabetização. Até o 5º ano aparece o ensino de consciência grafofonêmica – algo que deveria estar sedimentado até o final do 1º ano.

No Eixo Oralidade se fala de textos – sem priorizar, por exemplo, a importante transição entre as marcas da fala infantil e a aquisição da fala própria para situações orais formais – inclusive para contar histórias. Não há qualquer menção ao ensino e uso da norma culta, com a qual muitas crianças tomam contato pela primeira vez e à acolhida e abordagem dos dialetos.

No Eixo leitura aparece o item decodificação – sem qualquer detalhamento. Todos os outros 19 itens referem-se a habilidades de leitura – todas elas relevantes, mas não pertinentes à alfabetização. Há muita ênfase em questões de métodos (ensinar via “levantamento de hipóteses”), denunciando as preferências e o viés pedagógico dos autores do documento (o que não cabe num documento desta natureza).

No Eixo Escrita aparecem 3 itens referentes à “apropriação do sistema alfabético de escrita: escrita de palavras e frases, escrita de dados pessoais e cópia. Os demais itens referem-se à produção de textos.

No detalhamento das habilidades aparece a palavra ditado. Todas as demais habilidades referem-se a habilidades de produção de texto – habilidades essas que são mais produtivas se conduzidas pelo professor, até que a criança tenha suficiente fluência de escrita. Espera-se que um aluno do 1o ano “edite a versão final do texto”!

No Eixo Conhecimentos Linguísticos e Gramaticais – voltado para a “compreensão e apropriação do sistema alfabético de escrita aparecem 4 “objetos do conhecimento”: compreensão do sistema alfabético de escrita, consciência fonológica, consciência grafofonêmica. Apenas no 2o ano aparece a “consciência silábica”, que é uma aprendizagem que integra o processo de segmentação (frase-palavra-sílaba-letra/fonema) , assunto essencial no início do processo da alfabetização.

Na página 75, há uma lista de “habilidades” que merece análise, pois reflete um entendimento limitado e pouco usual sobre o sistema de escrita e seu ensino:

“Escrever o próprio nome e utilizá-lo como referência para escrever e ler outras palavras”. Essa orientação – talvez adequada na educação infantil – contrapõe-se à orientação anterior de promover o ensino sistemático e explícito das relações fonemas-grafemas. Isso equivale a orientar o aluno ao mesmo tempo seguir regras e tentar decifrar o código por ensaio e erro.

“Comparar palavra identificando semelhanças e diferenças entre sons de sílabas iniciais, mediais e finais”. Essa recomendação supõe que o código seria silábico, e não é alfabético (no sistema alfabético a unidade é o fonema, e não a sílaba). O estudo da sílaba é relevante na morfologia, não na alfabetização.

Em síntese:

Embora apresente avanços e permita a elaboração de currículos a proposta ignora os avanços da ciência cognitiva da leitura e perde a oportunidade de apresentar elementos necessários e suficientes para promover a efetiva alfabetização das crianças. Há graves erros apontados acima e enormes omissões – como a do uso de pseudopalavras para avaliar o domínio das habilidades de decodificação e as atividades próprias para desenvolver fluência de leitura (tema que só aparece no segundo ano).

Fala-se em produção de texto mas não se fala em sinais de pontuação, maiúsculas e minúsculas (a não ser no contexto da caligrafia). Além disso, como já observado, a falta de ponderação entre os diversos elementos não ressalta a centralidade que deve merecer o ensino da alfabetização no 1º ano. Num país que não consegue alfabetizar seus alunos de maneira adequada isso constitui uma grave deficiência da BNCC.

Clique aqui para conhecer a proposta de currículo de Alfabetização do Instituto Alfa e Beto

Língua Portuguesa

Na maioria dos países do mundo o currículo da língua é apresentado a partir de 3 eixos – Leitura, Escrita e Expressão Oral – correspondente as competências de ler, escrever e falar. A BNCC optou por apresentar 5 eixos, Oralidade, Leitura, Escrita, Conhecimentos linguísticos e gramaticais, Educação Literária. Isso torna a apresentação extremamente fragmentada.

A BNCC reflete uma determinada concepção da língua e ensino da língua comum entre linguistas, mas que em nenhum país é adotada como base para a formulação de currículos, e que implica um subjetivismo epistemológico que sugere que é a linguagem que cria o pensamento. Na maioria dos países do mundo os currículos não se apoiam nessa concepção, e se orientam menos para os textos em si e mais para o entendimento da estrutura e dos fatores que ajudam a compreensão dos mesmos – o que se dá fundamentalmente pelo domínio do vocabulário e da sintaxe.

O eixo que causa maior estranheza é o da “educação literária”. Um grande avanço é o reconhecimento da existência de textos do tipo “instrucional”- tópico que havia sido praticamente proscrito na PNCs – o livro didático e textos próprios para o ensino, inclusive da alfabetização e de fluência de leitura – que agora é reconhecido pela BNCC.

Clique aqui para conhecer a proposta de currículo de Língua Portuguesa do Instituto Alfa e Beto