Artigos de Mário Ghio no Educador21
Com sólida trajetória na área da educação e atual presidente do Instituto Alfa e Beto, Mário Ghio tem se dedicado a compartilhar reflexões e propostas sobre os principais desafios da educação pública brasileira. Seus artigos publicados no portal Educador21 abordam temas fundamentais como gestão educacional, políticas públicas baseadas em evidências e o papel da ciência no aprimoramento do ensino. Segue abaixo um dos textos publicados no portal.
O Renascimento italiano me encanta. Um momento único de efervescência cultural proporcionada pelo encontro de mentes privilegiadas, muito dinheiro e o desejo de construir dinastias duradouras. Gênova, Veneza, Milão e Florença disputavam lugar entre as cidades mais ricas do planeta. Famílias como os Sforza de Milão, ou os Medici de Florença patrocinavam arquitetos, engenheiros, escritores e artistas para projetar poder, reputação e moldar a política e a economia da época.
Este período singular da história proporcionou o encontro de personagens únicos. Se existisse uma máquina do tempo, eu gostaria de ser transportado ao Pallazzo Vecchio, sede do governo de Florença, entre os anos de 1503 e 1506. Mais especificamente, eu queria estar no Salão dos Cinquecento onde Michelângelo, em uma parede, pintava a batalha de Cascina, enquanto Da Vinci esboçava outra batalha fundamental da história fiorentina, a batalha de Anghiari. Dois dos maiores gênios da humanidade trabalhando lado a lado. Textos históricos informam que ambos eram homens extremamente fortes. Michelângelo quase um operário moldado por anos de trabalho árduo na escultura. Já Leonardo era capaz de erguer o corpo com qualquer um dos membros, segundo o biógrafo Giorgio Vasari. Homens fortes de gênio, físico e personalidade.
Diz-se que discutiam muito, talvez existisse uma competição ou fosse apenas as vaidades em pleno atrito. Infelizmente a história não registrou em muitos detalhes este encontro, mas alguns biógrafos posteriormente mencionam que numa das discussões Michelângelo teria dito a Da Vinci: “verdadeiros artistas entregam!”. A intenção da crítica era deixar claro para Leonardo que sua quase infinita lista de obras inacabadas não tinham o respeito de Michelângelo.
Quis o destino que ambos não terminassem as obras que começaram, por motivos distintos. Leonardo se frustrou com a técnica inovadora empregada na preparação da parede e abandonou o trabalho. Para ele, as obras eram mais oportunidades de estudo e inovação do que um trabalho artístico a ser finalizado. Buscava sempre a revolução, a disrupcão da técnica. Já Michelângelo foi chamado ao Vaticano pelo Papa Júlio II para elaborar o túmulo papal e na sequência pintar o teto e o altar da Capela Sistina. Entregou ambas, antes do prazo acordado.
Se Da Vinci buscava ser um revolucionário, Michelângelo buscava a perfeição pelo trabalho contínuo e metódico, buscava a evolução diária.
Escrevo este texto não para homenagear a ambos, mas a Mario Vargas Llosa, que faleceu há poucas semanas.
Certa vez tive a oportunidade de jantar com Vargas Llosa porque eu trabalhava em uma editora que lançaria seus principais livros em português e ele veio ao Brasil para o lançamento e divulgação das obras. Naquele momento ele ainda não havia recebido o Nobel de literatura, mas já era um dos autores mais premiados do mundo. Foi um jantar memorável! Falamos muito dos livros, em especial o Guerra no Fim do Mundo, um livro imperdível sobre a guerra de Canudos. Mario escreveu o texto com pesquisa histórica feita pelo seu grande amigo Jorge Amado. Acho que são motivos suficientes para que o leitor se interesse por este livro!
Mas a relação entre Vargas Llosa e Michelângelo surgiu quando Mario me disse que não se via como um artista, mas como um operário. Não sentia que tivesse nenhum dom especial além da paciência e trabalho duro. Me contou que chegava a passar três anos para finalizar uma obra. No primeiro escrevia a trama, desenvolvia os personagens e depois passava os anos seguintes cortando excessos, lapidando e polindo o texto. Quando lhe contei que Michelângelo pensava e trabalhava da mesma forma, ganhei um abraço e um livro com dedicatória que guardarei para sempre, de Mario “su tocayo”. Tocayo significa xará em espanhol.
Temos muito a aprender com os personagens deste texto. Enquanto Da Vinci foi, sem dúvida, um dos mais revolucionários gênios da história mesmo tendo finalizado apenas um punhado de obras, homens como Michelângelo e Vargas Llosa produziram obras espetaculares, em profusão. Buscavam melhorar dia a dia e se tornaram expoentes após décadas de trabalho árduo. Que lição!
Além da homenagem a Vargas Llosa, quero registrar nesta coluna sobre educação, que muitos buscam revolucionar, disruptar (expressões que ouço continuamente, em especial de Edtechs) o mundo escolar e, na falta do gênio de Leonardo, deixam pra trás apenas obras inacabadas e alunos prejudicados.
Sonho com o dia em que todos na escola sigam as lições de Michelângelo e Vargas Llosa. A fórmula para melhorar nossa escola é o trabalho árduo, diário. Nada de planos mirabolantes e inatingíveis, é o querer ser amanhã melhor do que hoje, é o desejo incansável de evoluir.